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«A
minha vida ficou decidida no instante em que salvei uma mulher das ondas do
mar. A acção heróica completa: agarrei num mergulho o corpo inerte, trouxe-o
para a praia, fiz-lhe respiração boca-a-boca e assisti ao seu regresso à vida.
Quando os primeiros socorros chegaram já estava tudo resolvido. E eu sabia duas
coisas: em primeiro lugar, que queria ser médico. Em segundo, que os seios
arfantes de uma mulher eram um excelente substituto do paraíso. Mais tarde
perceberia que tudo cansa, a salvação ou o paraíso. Tudo se repete. A vida dura
cada vez mais tempo, as coisas repetem-se, matemáticas. Quanto mais evidente se
torna a repetição, maior se torna a aceleração. A repetição torna-se epidemia,
a epidemia instala o pânico e a velocidade. Mais do mesmo, cada vez mais
depressa. Sobram-nos as pequenas coisas. Se as pudermos agarrar. Se nos
concentrarmos nisso ao ponto de encontrarmos um domicílio fixo para elas. As
coisas de que ninguém fala, as coisas sem valor. A cabeça de Ana Lúcia
movimentando-se sobre o meu colo, por exemplo. Os méritos do sexo oral são
muito subestimados. A pouco e pouco, a ideia da produtividade infiltrou-se e
começou a dominar todos os nossos actos, restringindo-os ao ritmo binário,
monocórdico, do útil e do inútil. Como se as nossas existências não se
encontrassem já saturadas de bifurcações: ricos e pobres, saudáveis e doentes,
vencedores e vencidos, feios e bonitos. Pagámos um alto preço pela morte de
Deus: a perda da tridimensionalidade. Falta-nos um interlocutor desinteressado,
alguém que não nos sirva, que não nos utilize, que nos ensine a sair do nosso
invólucro produtivo e a entender a gratuita e caótica beleza do mundo.
Percorrer com a língua o sexo de uma mulher. Senti-lo estremecer ao toque dos
dentes. Transformar dentes e língua em instrumentos de silêncio e mansidão,
oferecê-los à boca do corpo de uma mulher, deixarmo-nos guiar pela luz do seu
desejo e gozar com o gozo dela. A experiência sublime de causar uma felicidade
instantânea a outro ser. Ou oferecermos o mais precioso e estúpido pedaço do
nosso corpo à língua de uma mulher, conduzi-la até ao cume da montanha do nosso
prazer, derramarmo-nos na sua boca: tomai-me e bebei-me. Esta forma de
intimidade tornou-se escandalosa e risível, não serve para fabricar crianças,
não é um exercício de poder, não é sequer um exercício. Tudo o que for
exercício está justificado: mais saúde, melhores músculos, um admirável
contributo para o trabalho das aparências. O século XXI nasceu um puritano
disfarçado de tolerante. Há dias prenderam um rapaz e uma rapariga por estarem
a fazer sexo oral dentro de um carro, num ermo, à luz do dia. Atentado ao
pudor, escreveu-se nos autos. Hoje exerci o meu acto de cidadania solidária com
esse par, praticando sexo oral dentro de um carro, à hora dita de almoço, junto
desse monumento arquitectónico de vanguarda que é a Ponte Vasco da Gama.
As
honras da ideia, em boa verdade, têm de ser atribuídas à minha amiga Ana Lúcia.
Já não a via há semanas e de repente ela telefonou dizendo que precisava de
estar comigo hoje, nem que fosse só por uma hora. E hoje, precisamente, eu não
tinha mais do que isso. Pediu por favor, expressão inédita nela. Costuma dizer
que antes morrer do que pedir um favor a alguém. Combinou encontro comigo à
beira-rio, debaixo da ponte, porque era o local deserto mais próximo para
ambos. Não percebi a urgência, mas já me habituei às surpresas da frenética Ana
Lúcia. Entrei no carro dela e começou logo a beijar-me, enquanto me desapertava
as calças, me acariciava e se enganchava em mim, coberta pela saia rodada.
Estranhei-lhe, não a fogosidade mas a desenvoltura, Ana Lúcia tem pavor de ser
apanhada em falta em sítios públicos. Nessas coisas não se lembra de ser
feminista. No sexo também não, e eu agradeço isso. Hoje não sei o que lhe deu.
Da segunda vez insistiu, contra os meus protestos democráticos, em querer
chupar-me até ao fim e beber-me. Quero que não consigas esquecer-me. Quero
ficar com o teu sabor. O temporal protegeu os nossos arroubos. A chuva e o
vento eram demasiado fortes para que ladrões, violadores ou autoridades
policiais viessem interromper-nos. A ponte e o rio diluíam-se nas cordas de
água que desabavam sobre o carro. O universo desfazia-se. Estávamos sozinhos e
suados no extremo oriental da cidade, no meio do dilúvio derradeiro. A chuva
escureceu os olhos de Ana Lúcia quando olhei para o relógio: Desculpa, menina,
és muito bonita mas eu tenho de ir salvar mais umas vidas. Dez minutos. Não dá
mesmo. Vontade não me falta, tu sabes. Sei. Vontade não te falta, pois. Entrei
a correr no bloco operatório. Contra as normas: nos hospitais a serenidade é
obrigatória. Como se dominássemos o tempo». In Inês Pedrosa, Os Íntimos, Publicações
dom Quixote, 2010, ISBN: 978-972-204-047-1.
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