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Anno Domini MMVI
«(…) As
coisas não correram tão mal: só havia se passado meia hora e Sarah já estava
dentro do táxi, fora do Terminal Dois, pronta para ir para casa. Belgrave Road,
please, seguido do número que não divulgaremos por razões de privacidade, tão
boas quanto outra qualquer. Mais meia hora ou quarenta minutos, dependendo do
trânsito, e poderá tomar o tão desejado banho de espuma com a banheira quase
transbordando, sais balsâmicos para perfumar o ambiente, morango e baunilha,
uma mistura poderosa que relaxa os músculos e tranquiliza o espírito, se é que ele alguma vez se inquieta. Contorna
a Victoria Station, sempre cheia de gente, e entra mais à frente na Belgrave
Road, repleta de hotéis baratos, de um lado e do outro, e com muita gente
carregando malas em ambas as calçadas. Uma rua tipicamente londrina; quase
todas as casas com duas colunas sustentando o pórtico frontal, uma de cada
lado, algumas trabalhadas, outras lisas, dependendo do gosto do construtor ou
do proprietário. Casas centenárias, vitorianas, sem dúvida, mas sem mácula nas
pinturas recentes, naquelas fachadas não é de ladrilho acastanhado. O táxi vai
praticamente até o final da rua. Perto da sua porta, o motorista se vê obrigado
a travar bruscamente, fazendo com que Sarah quase choque contra as protecções
de vidro do veículo, destinadas a separar o taxista de clientes perniciosos. Um
carro negro, de vidros escuros, colocara-se de repente à frente deles e
permanecia parado, pouco se importando com quem estava atrás. O homem do
emblemático carro de aluguel londrino aperta a buzina, enrubescido pela fúria. Move
on!, grita ele para o da frente, que continua imóvel. Get the fuck out of the
way! A fila de carros fica cada vez maior. Ouvem-se mais buzinas e queixas de
motoristas apressados. O condutor do carro da frente baixa o vidro e coloca a
cabeça para fora, na direcção do taxista inglês, profere um Sorry, mate e segue
viagem.
Segundos
depois o táxi pára em frente à porta de Sarah Monteiro, e o taxista é gentil o
bastante para lhe tirar a mala. Depois de recebidas as libras devidas, ele
parte em direcção a outros clientes, outros desejos, outras libras esterlinas.
Ao entrar em casa, Sarah depara logo com um monte de correspondência espalhada
no chão. Postais de colegas, contas para pagar e, claro, propaganda de todos os
tipos, e mais coisas para
as quais não tem paciência nesse momento. Leva a mala até ao quarto, no
primeiro andar, vai encher a banheira e relaxa; afinal de contas, é a sua casa.
Precisa de algumas coisas da mala e a abre, encontrando-a sem a chave. Nota
esse facto; as fechaduras estão todas abertas, e ela se lembra de as ter
fechado. Até se recorda onde, a que horas, o que mais estava fazendo, com quem
falava e o que dizia quando as fechou. Dentro, a roupa está revirada; alguém
tinha aberto sua mala entre o Aeroporto da Portela e o de Heathrow. O melhor é
ir lá, o que fará amanhã de manhã. Só lhe faltava essa! Tenta ver se falta
alguma coisa na mala, mas, apesar de estar remexida, nada lhe parece a menos,
tampouco a mais. Dois minutos depois, está na banheira, desfrutando da bendita
espuma e dos benditos sais, e mel em vez de baunilha, porque este acabara; mas
o efeito é o mesmo: relaxante, repousante, calmante. Já nem se lembra da mala
nem do mal-humorado funcionário do aeroporto. Mais tarde, no meio de toda a pilha
de correspondência, consegue abrir um envelope e vê o nome do remetente:
Valdemar Firenzi.
Muito
se poderia dizer do quadro para onde esse homem olha. A infanta Margarita, ao
meio, e Isabel Velasco e Agustina Sarmiento, de ambos os lados; dois anões, do
lado direito de quem vê, que fique bem claro; María Barbola e Nicolas
Pertusato, este último com um pé em cima de um cão que dormitava. Atrás, nas
sombras, Duenna Marcela de Ulloa com um homem não identificado, coisa difícil
de acreditar, pois os pintores não são homens capazes de colocar objectos não
identificáveis nas telas. Tudo tem o seu significado, e, se não se sabe quem é, assim quis o artista,
também ele auto-retratado na própria pintura, à esquerda, exercendo o seu
ofício para a posteridade: pintar as magnânimas figuras de Filipe IV e de dona
Mariana reflectidas num espelho por trás dele, pois de outra forma não
conseguiríamos ver o reflexo do seu trabalho, já que a tela está de costas para
nós. Para terminar, o contramestre da rainha, José Nieto Velázquez, que está à
porta, de saída. Belíssimo quadro, sem dúvida, mas não é ele que nos interessa,
mas o homem que para ele olha. Convém esclarecer o local onde esse homem
observa o quadro: é a sala número três do Museo Nacional del Prado, em Madrid.
É quase hora de fechar, mas ele não se constrange e continua a contemplar,
quase sem pestanejar, a obra de Diego Velázquez, As Meninas, a pérola do
museu.
Señor, está
na hora de fechar. Por favor, encaminhe-se para a saída, adverte educadamente
um jovem segurança, porque há que respeitar os homens de idade, como esse que
olha para o quadro que bem sabemos. O segurança é zeloso e quer se certificar
de que sua ordem, proferida em forma de pedido, seja cumprida. Conhece-o de
vista, dali, daquele mesmo local, onde o vê quase todos os dias olhando
interminavelmente para o quadro, durante horas e horas; os turistas passando e
ele, ali, como um quadro a olhar para outro. Alguma vez admirou esta pintura?,
pergunta o homem. O segurança olha ao redor: não há mais ninguém ali, então a
pergunta deve ser para ele. Está falando comigo? O homem o ignora e continua a
fitar o quadro. Alguma vez admirou esta pintura?, repetiu. Mas é claro! Este
quadro é como a Mona Lisa no Louvre. Tolice. Diga-me o que vê. O segurança se
acanha. O homem aparenta ter uma cultura acima da média, se é que essas coisas
se veem assim a olho nu; falar demais só provocará
embaraço». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN
978-972-883-969-7.
Cortesia
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