Cortesia de wikipedia e jdact
«Meu nome é Serena Frome (a pronúncia é
Frum) e há quase quarenta anos fui enviada numa missão secreta do Serviço de
Segurança britânico. Eu não voltei em segurança. Um ano e meio depois de entrar
fui despedida, depois de ter caído em desgraça e acabado com a vida do meu
namorado, embora ele certamente tenha tido um pouco a ver com a sua própria
queda. Não vou perder muito tempo com a minha infância e a minha adolescência.
Sou filha de um bispo anglicano e cresci com uma irmã numa catedral de uma
cidadezinha linda no leste da Inglaterra. A minha casa era simpática, lustrosa,
organizada, cheia de livros. Os meus pais gostavam bastantinho um do outro e me
adoravam, e eu a eles. A minha irmã Lucy e eu tínhamos um ano e meio de
diferença e, apesar de nós termos passado a adolescência brigando e gritando
uma com a outra, isso não deixou grandes cicatrizes e nós ficamos mais próximas
na vida adulta. A fé do nosso pai em Deus era uma coisa acomodada e razoável,
não se metia muito na nossa vida e foi apenas o suficiente para ele conseguir
subir tranquilamente na hierarquia da Igreja e nos instalar numa confortável
casa do período da rainha Anne. A casa dava para um jardim cercado por muralhas
de plantas que eram, e ainda são, muito bem conhecidas por quem entende de jardinagem.
Então, tudo muito estável, invejável, até idílico. Nós crescemos dentro de um
jardim murado, com todos os prazeres e limitações que isso implica. A segunda
metade da década de 1960 mitigou o nosso modo de vida mas não acabou com ele.
Eu nunca perdi um só dia de aula na escola local a não ser que estivesse
doente. No fim da minha adolescência os muros do jardim viram alguma bolinação,
como as pessoas diziam na época, umas tentativas com cigarros, álcool e um
pouco de erva, discos de rock, cores mais vivas e relações mais quentes de um
modo geral. Com dezassete anos eu e as minhas amigas éramos tímida e encantadoramente rebeldes, mas fazíamos a lição de casa, decorávamos e
vomitávamos os verbos irregulares, as equações, as motivações de personagens de
ficção. Nós gostávamos de nos ver como meninas travessas, mas na verdade éramos
bem boazinhas. Aquilo era agradável, aquela empolgação toda que estava no ar em
1969. Era algo inseparável da expectativa de que logo chegaria a hora de sair
de casa e ir estudar em outro lugar. Nada de estranho ou terrível aconteceu
comigo durante os meus primeiros dezoito anos e é por isso que eu vou saltar
esse período. Se dependesse de mim, eu teria escolhido
fazer uma faculdadezinha preguiçosa de letras numa universidade provinciana bem
ao norte ou a oeste de casa. Eu gostava de ler romances. Eu lia rápido, às
vezes dava conta de dois ou três por semana, e fazer isso por três anos teria
sido bem a minha cara. Mas naquela época eu era considerada uma aberração, uma
menina que por acaso tinha talento para matemática. Eu não tinha interesse no
assunto, ele me dava pouco prazer, mas eu gostava de estar por cima, e de
chegar no alto sem fazer muita força. Eu sabia as respostas das perguntas antes
até de saber como tinha chegado a elas. Enquanto as minhas amigas faziam
esforço e calculavam, eu chegava a uma solução através de uma série de passos
lépidos que eram em alguma medida visuais e em alguma medida só uma noção do
que ficava bem em cada caso. Era difícil explicar como eu sabia o que eu sabia.
Obviamente, uma prova de matemática era muito menos difícil que uma de
literatura inglesa. E no meu último ano eu fui capitã da equipe de xadrez da
escola. Precisa fazer um exercício de imaginação histórica para entender o que representava
para uma menina, naquela época, viajar para uma escola da vizinhança e derrubar
um pirralhinho condescendente e o seu sorrisinho amarelo do poleiro em que ele
se tinha encarapitado. Mas matemática e xadrez, além de hóquei, saias
pregueadas e canto coral, eu considerava meramente coisas da escola. Achei que
estava na hora de largar essas coisas infantis quando comecei a pensar em me
matricular na universidade. Mas não levei a minha mãe em consideração. Ela era
a quintessência, ou uma paródia, da esposa de um vigário e depois de um bispo,
uma memória formidável para nomes e rostos e para as cismas dos membros da
paróquia, um jeito de singrar uma rua da cidade com um lenço Hermès, com modos
delicados-mas-firmes com a diarista e o jardineiro. Um charme irrepreensível em
qualquer escala social, em qualquer tom. Com que ar de entendedora ela encarava
as fumantes inveteradas e enfarruscadas dos conjuntos habitacionais quando elas
vinham para o Clube de Mães e Bebés na cripta. Com que entusiasmo ela lia a
historinha de véspera de Natal para as crianças dos Barnardo, sentadas aos pés
dela na nossa sala de estar. Com que autoridade natural ela pôs o arcebispo de
Canterbury à vontade quando ele passou uma vez para tomar um chá e comer uns
bolinhos depois de abençoar a fonte restaurada da catedral. Lucy e eu fomos
expulsas para o andar de cima enquanto durou a visita dele. Tudo isso, e essa é
que é a parte difícil, combinado com uma total devoção e subordinação à causa
do meu pai. Ela era a sua propagandista, a sua criada, a pessoa que facilitava
a vida dele a todo momento. Das meias guardadas em caixinhas e da sobrepeliz
passada a ferro e pendurada no guarda-roupa ao seu escritório espanado e ao
profundíssimo silêncio dos sábados em casa, quando ele estava escrevendo o
sermão. A única coisa que ela exigia em troca, palpite meu, é claro, era que
ele a amasse ou que, pelo menos, nunca a deixasse. Mas o que eu não tinha
entendido sobre a minha mãe era que enterrada bem fundo, por baixo desse
exterior convencional, estava a sementinha resistente do feminismo. Eu tenho
certeza de que essa palavra nunca saiu da sua boca, mas não fazia diferença. As
certezas dela me assustavam. Ela disse que era meu dever como mulher ir estudar
matemática em Cambridge. Como mulher? Naquele tempo, ou no nosso meio social,
ninguém, jamais, falava com você nesses termos. Mulher nenhuma fazia algo como
mulher. Ela me disse que não permitiria que eu desperdiçasse o meu talento. Eu
iria brilhar e fazer algo extraordinário. Eu tinha de ter uma carreira de
verdade na ciência ou na engenharia ou na economia. Ela se deu o direito de
usar o clichê do mundo aos meus pés. Era injusto com a minha irmã o facto de eu
ser inteligente e linda e de ela não ser nenhuma dessas coisas. Seria uma
injustiça ainda maior se eu deixasse de mirar alto. Eu não entendi muito bem a
lógica por trás disso, mas não abri a boca. A minha mãe me disse que jamais me
perdoaria e jamais se perdoaria se eu fosse estudar letras e virasse apenas uma
versão levemente mais educada da dona de casa que ela era. Eu estava correndo o
risco de jogar a minha vida fora. Foram as palavras dela, e elas
representavam uma confissão. Foi a única vez que ela manifestou ou confessou
estar insatisfeita com o seu destino. Aí ela cooptou o meu pai, o Bispo era
como a minha irmã e eu o chamávamos. Quando eu cheguei da escola um dia a minha
mãe me disse que ele estava esperando por mim no escritório. Com o meu blazer
verde e seu brasão heráldico com lema bordado, Nisi Dominus Vanum, Sem o
Senhor Tudo é em Vão, eu me arrastei mal-humorada até à poltrona de couro com
jeito de clube de senhores enquanto ele presidia a sessão sentado à sua mesa,
remexendo em alguns papéis e cantarolando baixinho enquanto punha as ideias em
ordem. Eu achei que ele estava ensaiando para mim a parábola dos talentos, mas
ele adoptou uma linha surpreendentemente prática. Ele tinha feito umas sondagens».
In
Ian McEwan, Serena, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-121-2.
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