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A menina levantou o olhar, fitando a anciã. E porque não? Passa a maior parte
do tempo a dormir. Está velho e cansado, a anciã afastou do rosto uma madeixa
de cabelo branco. Além disso, já não tem dentes. Quando ele boceja podes ver
que lhe faltam os quatro caninos grandes. Como pode, assim matar pássaros à
dentada? E ele gosta de pão? A anciã acenou afirmativamente com a cabeça. Posso
fazer-lhe ume festa? Claro que sim. Com todo o cuidado, a pequenita passou a mão
sobre o pelo eriçado. O gato consentiu, continuando a comer como se nada fosse.
Gatinho velho e lindo, disse a menina. Como seria ser rnãe? Daria banho à
menina e comprar-lhe-ia roupas bonitas. Ensinar-lhe-ia a entrançar grinaldas de
flores. Todas as noites haveria de cantar com ela. No entanto, o homem que Dalila
amava nada sabia a respeito dela. Sentia uma afinidade entre ambos, um sentimento
que a dominava inteiramente, ao passo que ele calhara com a mulher errada. A
sua irmã gémea tinha sangue-frio e era calculista, era pretensiosa, altiva e
superficial. Nada tinham a ver um com o outro. Como era possível que ele amasse
Leonor e não ela? Não conseguiu deixar de pensar no beijo que ele dera à sua irmã
durante a sua última visita, um beijo nos lábios. Sentira um fogo a arder na
barriga. Havia algo naquele mundo que não batia certo. Deus deveria estar
distraído, não prestava atenção. No fim do íngreme desfiladeiro formado por
aquela rua resplandecia o Tejo, um vasto tapete de água azul repleto de navios.
Se ela pudesse fugir com Antero! Se conseguisse esgueirar-se para o interior do
seu navio e, na companhia dele, navegar para longe da irmã! Lá fora, no mar,
ele logo abriria os olhos. Iria reparar nela, Dalila, e dar-se conta do quanto
andara cego. O Senhor tinha aqui algo a fazer. Tinha de ajudá-la. Através da
Rua Nova dos Mercadores avançava uma interminável massa de gente, que murmurava,
gritava e ria. Deixou-se mergulhar nela e virou de seguida à esquerda. De ambos
os lados da rua erguiam-se barracas que se ofereciam à multidão. Alguns desses
pequenos comerciantes haviam-se estabelecido nas escadas das casas. Podia-se-lhes
comprar malas, cestos, adornos, tachos, facas. Outros comerciantes ainda tinham
tâmaras e cerejas para oferecer. Cheirava a bacalhau assado. Sobre este
espalhava-se o odor a sabão em pó. As lavadeiras, nos pátios, espalhavam-no na
água das suas tinas, era o odor mais típico dos bairros mais pobres da cidade.
Desde que estava apaixonada por Antero, apreciava este cheiro. Identificava-se
com os pobres. Tal como ela, eles eram infelizes.
Dalila
gostava de estar em Alfama, o bairro dos estivadores e das lavadeiras, das prostitutas,
dos ladrões e dos jornaleiros. Desde sempre fora esta a zona da cidade onde paravam
os que a sociedade colocava à margem. Viviam aqui mouros empobrecidos, aleijados,
zarolhos e judeus convertidos. Lisboa assemelhava-se a um anfiteatro que descia
em direcção à água. O porto era o palco. Cinco colinas rodeavam o grande vale onde
se situava o centro da cidade, dispostas como se fossem as galerias de um
teatro. Alfama, no entanto, situava-se mais na rectaguarda, igualmente perto do
rio, porém excluída. A cidade ficava de costas viradas para ela. Só a Inquisição
(maldita) é que aparecia
com frequência em Alfama, onde ia à caça de judeus que se mantivessem fiéis às
suas velhas práticas, que lhes eram proibidas. Sobre os degraus de uma escada,
um comerciante havia exposto centenas de figuras de santos pintadas de várias
cores. A maioria delas representava Santo António, o padroeiro da cidade. Cada
uma das figuras do santo segurava o Menino Jesus no braço esquerdo e no direito
um livro e um lírio. Ainda assim, nem todas as figuras eram iguais. Dalila
segurou numas quantas individualmente e observou-as. Um Santo António lançava
um olhar irado, ao passo que outro soltava uma lágrima, o terceiro tinha uma
madeixa de cabelo a tapar-lhe parte do rosto, ao quarto a tinta que coloria o hábito
de monge já estalara. O quinto, no entanto, que ela segurava nas mãos,
agradou-lhe logo à primeira. Sorria para o Menino, que segurava no braço, e de
resto estava ileso. Dalila perguntou o preço. Dois tostões. Saída do manto do
comerciante, estendeu-se uma mão magra e seca. Por debaixo das pregas da capa
era impossível reconhecer os traços do seu corpo. Qual a magreza do homem, ao
certo? Vendia aquelas figuras e ele próprio mais não era do que uma sombra.
Dou-lhe um. O homem magro olhou-a, como que a avaliá-la. Preferiria mesmo que
fossem dois. Claro, o vestido de seda. Revelava que ela provinha de um meio abastado».
In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa,
2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.
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