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«(…)
A vozinha cariciosa envolve todas as frases com um sentido equívoco, e o seu
discurso não perde nada com os pequenos e lancinantes suspiros com que ele o
sublinha. Durante uns minutos reina o silêncio. Vejo no espelho o alto da
cabeça de Mnemjian, essa crista obscena de cabelos negros que ele arranjou em
caracol ao lado das fontes, sem dúvida com o fim de distrair as atenções da
marreca. Enquanto manobra a navalha, os olhos perdem o brilho e o rosto
torna-se tão inexpressivo como um fundo de garrafa. Os dedos trabalham as
nossas faces com o mesmo desinteresse frio com que trabalham as faces exigentes
(e, sim!, felizes) dos mortos. Desta vez, diz Mnemjian, há-de ficar satisfeito.
Ela é nova, asseada e não custa caro. Verá por si próprio, é uma perdigota, um
raio de mel com todo o mel intacto dentro dela, uma pombinha. Neste momento tem
falta de dinheiro. Saiu há pouco do manicómio de Helwan, onde o marido tentou
interná-la. Arranjarei para que ela esteja no Rose-Marie na última mesa do
passeio. Vá vê-la quando for uma hora; se a quiser, entregue-lhe o cartão que
eu lhe vou dar. Mas lembre-se de que é a mim que deve pagar. De homem para
homem, é a única exigência que eu faço. Durante um momento não diz mais nada.
Pombal continua a observar a sua própria imagem no espelho, enquanto a
curiosidade natural que o revolve se debate com a imensa apatia do Estio. Mais
tarde precipitar-se-á, sem dúvida, no apartamento, levando consigo qualquer
pobre criatura esgotada e bravia, cujo sorriso idiota nenhum outro sentimento
despertará nele além da piedade. Não posso negar a bondade do meu amigo, pois,
na verdade, dá-se a trabalhos para conseguir empregar essas raparigas; com
efeito, a maior parte dos consulados contam entre o seu pessoal antigas
desgraçadas que se esforçam desesperadamente por parecer dignas, e é à
assiduidade de Georges junto dos seus colegas de carreira que elas devem os
seus empregos. Entretanto, não existe mulher, por mais humilde velha ou usada,
que não lhe mereça uma demonstração exterior de consideração, uma dessas
pequenas galantarias, uma dessas frases que eu associo com o temperamento
gaulês, esse encanto francês, cerebral e falso que tão facilmente se evapora
para se transformar em orgulho e em indolência mental, tal como os pensamentos
franceses que tão rapidamente se perdem em moldes de areia, o esprit original
cristalizando imediatamente em conceitos de onde se encontra ausente toda a
sensibilidade. O omnipresente sexo que flutua sobre os seus pensamentos e as
suas acções tem, contudo, um ar de desapego que o torna qualitativamente
diferente das acções e dos pensamentos de um Capodistria, por exemplo, a quem
muitas vezes encontramos na loja de Mnemjian à hora da barba. Capodistria tem
uma maneira involuntária de feminilizar tudo aquilo de que se aproxima; sob o
seu olhar, as cadeiras tornam-se dolorosamente conscientes da nudez das suas
pernas. Penetra nas coisas. Sentado à mesa com ele, vi uma melancia fremir sob
a carícia do seu olhar e senti vibrar as grainhas do seu ventre! As mulheres
sentem-se como a ave diante da víbora em frente daquela cara estreita e chata,
daquela língua que se move sem cessar sobre os lábios sumidos. Penso uma vez
mais em Melissa: hortus conclusus, soror mea sponsor...
Regard
dérisoire,
diz Justine. Como se explica que você seja um de nós e entretanto..., esteja
tão longe? Ela arranja os seus belos cabelos negros diante do espelho, com um
cigarro a arder entre os lábios. Você é, evidentemente, um refugiado mental,
visto que é irlandês, mas tem ainda que partilhar a nossa angoisse. De
facto, o que ela procura surpreender é essa qualidade distintiva que procede
não de nós mas da paisagem, os aromas metálicos que impregnam a atmosfera debilitante
do lago Mareotis. Enquanto a escuto, penso nos fundadores da cidade, no
Deus-Soldado no seu caixão de vidro, no corpo de comovente juventude na sua
armadura de prata, descendo o rio até ao local onde se erguia o túmulo. Ou
nessa grande cabeça quadrada, de negro, de onde emana um conceito de Deus,
concebido no espírito da pura especulação intelectual: Plotino. É como se as
preocupações desta paisagem convergissem num ponto fora do alcance da maior
parte dos seus habitantes, numa região onde a carne, posta a nu pelo abuso das
suas reticências finais, devesse submeter-se a uma preocupação infinitamente
mais compreensiva; ou extinguir-se nessa espécie de esgotamento que as obras do
Mouseion representam, os cândidos jogos dos hermafroditas nos jardins
verdejantes da Arte e da Ciência. Poesia, desajeitada tentativa de inseminação
artificial das Musas; metáfora de uma estupidez flagrante, da cabeleira de
Berenice cintilando no céu nocturno por sobre a face adormecida de Melissa. Ah!,
disse Justine uma certa vez, se ao menos houvesse algo de livre, algo de
polinésico nesta devassidão em que vivemos. Ou mesmo de mediterrânico,
devia ela ter acrescentado, porque as implicações de cada beijo seriam
diferentes em Itália e em Espanha; aqui, os nossos corpos estavam feridos pelos
ventos ásperos e esterilizantes que sopravam dos desertos africanos, e éramos
obrigados a substituir o amor por uma ternura cerebral mais cruel, que, longe
de repelir a solidão, só servia para exacerbá-la ainda mais. Até a própria
cidade tinha dois centros de gravidade: o pólo real e o pólo magnético da sua
personalidade; e, entre os dois, o temperamento dos seus habitantes
dissolvia-se e esgotava-se em vãs descargas eléctricas». In Lawrence Durrell, Quarteto de
Alexandria, 1957, Justine, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações
dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.