domingo, 29 de janeiro de 2017

Justine. Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «O seu velho comércio abrange os dois mundos, e algumas das suas melhores observações começam por esta frase: como me dizia Fulano ao dar o último suspiro»

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«(…) Mais tarde, quando quase enlouqueci em tormentos e me encontrei pesadamente endividado para com Capodistria, passei a considerá-lo um companheiro menos agradável; e, certa noite, Melissa, meio embriagada, encontrou-se sentada em frente dele, diante do fogo, num tamborete baixo, tendo entre os dedos longos e pensativos a letra que eu tinha assinado, com a simples palavra pago escrita transversalmente, a tinta verde, numa caligrafia agressiva... São estas recordações que fazem sofrer. Melissa explicou: Justine poderia ter pago a tua dívida e isso não lhe causaria grande transtorno. Mas já basta que tenha o teu desejo: não quero que tenha, também, a tua gratidão. E depois, embora te não importes muito comigo, queria fazer alguma coisa por ti, e o sacrifício, afinal, não foi demasiado grande. Pensava que não ficarias muito triste por eu me deitar com ele. Não fizeste tu o mesmo por mim, quero dizer, não pediste dinheiro a Justine para pagar a clínica, as radiografias e tudo o mais? Mentiste-me a esse respeito mas eu descobri a verdade. Eu não podia mentir, eu nunca minto. Toma a letra, rasga-a: mas não voltes a jogar com ele. Tu não te podes ligar com um homem da sua espécie. E voltando a cara fez o simulacro de cuspir, como fazem os Árabes.
Da vida pública de Nessim, essas gigantescas e enfadonhas recepções, de início frequentadas apenas por homens de negócios, mas que mais tarde deram pretexto a tenebrosas conjuras políticas, não quero ocupar-me. Atravessando furtivamente o vestíbulo a caminho do estúdio, detinha-me para examinar o grande escudo de couro sobre a chaminé, onde se encontrava também um plano da mesa, para ver quem tinha sido colocado à direita e à esquerda de Justine. Durante algum tempo tentaram, gentilmente, fazer-me participar destas reuniões, mas eu pretextava cansaço e sentia-me feliz por poder dispor do estúdio e da imensa biblioteca. Mais tarde encontrávamo-nos como conspiradores e Justine lançava fora as máscaras de alegria, tédio e petulância que arvorava em sociedade. Desembaraçava-se dos sapatos e jogávamos cartas à luz da candeia. Quando ia deitar-se lançava um olhar ao espelho e dizia para a sua imagem: não passas de uma judia histérica e pretensiosa! O estabelecimento de Mnemjian, barbeiro, natural da Babilónia, ficava na esquina da Rua Fouad com a Rua Nebi Daniel, e era lá que todas as manhãs eu e Pombal nos encontrávamos reflectidos em frente dos espelhos vizinhos. Erguiam-nos ao mesmo tempo nas cadeiras e cobriam-nos com duas mortalhas brancas, como faraós mortos, para logo reaparecermos nos espelhos, como dois insectos numa montra. Era um garoto negro quem nos prendia as toalhas, enquanto o barbeiro ia misturando a espuma oleosa e perfumada numa grande tigela vitoriana, antes de aplicá-la em pequenos toques hábeis nas nossas faces. Depois de dar a primeira camada, deixava-nos de novo nas mãos do garoto para ir afiar a navalha numa enorme língua de couro que pendia, ao fundo da loja, no meio das fitas de papel mata-moscas. O pequeno Mnemjian é um anão cujo olhar violeta não perdeu ainda a candura infantil. E, contudo, ele é o arquivo da cidade. Se quisermos conhecer os ascendentes ou as posses de qualquer pessoa, não há quem melhor nos informe; conta-nos todos os pormenores enquanto afia a navalha, experimentando o fio nos pêlos hirsutos do antebraço. E o que ele não souber depressa o descobre. E sabe tanto sobre os mortos como sobre os vivos, posto que o hospital grego o utiliza para barbear e vestir as suas vítimas, antes de as abandonar aos gatos-pingados; é uma tarefa que ele desempenha com o zelo e o prazer de todos os da sua raça. O seu velho comércio abrange os dois mundos, e algumas das suas melhores observações começam por esta frase: como me dizia Fulano ao dar o último suspiro. Parece que tem muita sorte com mulheres e consta que arredondou uma pequena fortuna à custa das suas admiradoras. Mas há, também, as velhotas egípcias, mulheres e viúvas dos paxás, que ele visita regularmente para lhes compor o penteado. Segundo ele, essas senhoras já experimentaram tudo e, dando uma palmada na medonha giba que lhe carrega as costas, acrescenta orgulhosamente: isto excita-as. Entre outras coisas possui uma cigarreira de ouro, oferta de uma sua admiradora, onde guarda uma colecção de mortalhas soltas. O seu grego é deficiente, mas enriquecido pôr inesperadas imagens, e Pombal não consente que ele lhe fale em francês, embora domine esta língua muito melhor. Está, presentemente, alcovitando para o meu amigo, e sempre me admiram os súbitos assomos de poesia que ele põe na descrição das suas protégées. Debruçado sobre a face lunar de Pombal, dirá, por exemplo, enquanto a navalha começa a ranger sob a camada de espuma: tenho uma coisa para si, uma coisa muito especial. Pombal surpreende o meu olhar no espelho e volta rapidamente a cabeça com receio de que desatemos ambos a rir às gargalhadas. Emite um grunhido prudente. Mnemjian eleva-se ligeiramente na ponta dos pés e aproxima-se mais da orelha de Pombal, entortando os olhos». In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1957, Justine, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia de PdQuixote/JDACT