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Estamos no equinócio da Primavera, Noruz, o Ano Novo persa. Na nossa mesa
cerimonial podem ver-se os haft-seel, ou os sete s’s, que simbolizam
o renascimento, a fertilidade e a riqueza. A fazer-nos companhia estão os
fantasmas amigáveis da grand-mére é preciso ter olhos e ouvidos especiais
para ver e ouvir os espíritos dizia madame Gabrielle, e tu, minha querida, possuis
essas duas bênções. Uma vez tendo-se convidado para a cerimónia, pairam sobre a
mesa e em seu redor, as suas silhuetas translúcidas reflectidas num espelho com
moldura de prata e cujo significado é a vida. Rodopiam em torno das chamas das velas
que, por seu turno, representam a luz, e empoleiram-se em moedas de ouro que simbolizam
a riqueza. Lambem os bolos de trigo em busca de doçura, instalam-se em rebentos
de trigo, jacinto e alho como forma de garantirem fertilidade, beleza e saúde. Evitando
uma tigela de vinagre que representa a paciência, descrevem círculos em volta das
maçãs de água de rosas que, por seu turno, representam a saúde, e beijam as cascas
pintadas dos ovos, os bolos de arroz, e as minhas faces. Não estamos sós nem
nos sentimos sozinhos, eu e Cyrus. Aninhados na otomana, corados devido ao lume
que arde no fogão bojudo e a um jantar composto por peixe branco fumado e arroz
aromatizado com ervas. As vozes dos muezzin que chamam para a oração do fim
da tarde nas mesquitas da cidade ecoam pelas montanhas. O aroma do chá de jasmim
é reconfortante. Aproxima-te…, jounam, murmura Cytus, ao mesmo tempo que
mergulha a mão nos meus caracóis da cor do cobre, a língua a deslizar-me pelo pescoço.
Quero que me conheças como nunca mais ninguém o fez. A noite passada..., que perigo
foi mergulhar no teu perfume de âmbar cinzento. Recita-me um poema, peço. Ele então
conta-me a história de amor de Laila e Majnun, de Nizami, o poeta do século
XII, seguida da lenda de Khosrow e Shirin, tirado do épico do século
X, o Shahnameh, de Ferdowsi. Perco-me no marulhar da sua voz. Ele embarca
numa viagem mística aos corações dos amantes antigos e aos poemas fatalistas do
Sufi Saadi. Porque será que o mito e o romance persa nunca são recompensados?
Começo a encontrar paz na solidão das montanhas, uma partilha que culmina na união
perfeita que toma as palavras supérfluas. Ele fecha o livro e descansa no meu colo.
Entrega-me uma caixa, e os seus olhos alongados buscam os meus. A moldura de marfim
vem da África do Sul. Mas a fotografia é de Antoin Sevruguin, um russo educado
na Pérsia. Sinto-me atraída pela graça e pelo mistério da imagem da Mulher Velada
com Pérolas, o perfil sedutor coberto por camadas de renda. Usa uma coroa feita
com moedas de ouro; o pescoço está enfeitado com pérolas. Apesar de coberta,
exala uma sensualidade muda, poderosa. Ele desliza o polegar pela minha face. O
chador pode ocultar a força e as capacidades de uma mulher, tornando-a mais
agradável aos olhos da nossa cultura. Pode constituir um acto de libertação
observar os outros sabendo que ninguém nos conhece ou sabe para quem estamos a
olhar. Nunca usarei um chador..., nem mesmo para ti. Trata-se de uma forma de
obedecer às restrições públicas sem sucumbir às suas limitações. Aqui, nem sempre
é uma questão de escolha.
Se as
montanhas acabarem por se transformar na minha casa, talvez. Nesse caso, vamos inventar
um passado e uma história para a nossa casa. Pega no material de escrita, o papel
de tornassol e a tinta azul-índigo. Encantam-me os subterfúgios excêntricos com
que Cyrus desafia o mundo, a camisa aberta, a cor da tinta com que escreve, o aparo
largo da caneta, tão ousada quanto um grito. Deixa tudo bastante claro a meu respeito,
jounam. Diz aos meus inimigos que se mantenham afastados de quem amo. Deixo-me
maravilhar pelo seu barítono profundo e pelo poder da sua imaginação, e ouço-o
evocar um tempo em que o vulcão Damavand não se deixara ainda cair na sua letargia
fumarenta, um tempo em que as pedras que sulcavam o sopé da ravina de Rostam
ainda não haviam sido polidas pelos séculos, um tempo em que as estrelas colidiam
entre si, e os oceanos ainda não tinham amadurecido ao ponto de executarem a sua
presente sinfonia. Mesmo então, há tanto tempo, havia um homem que sonhava construir
uma casa de pedra no topo dos picos nevados das montanhas para a sua noiva
parisiense. Junto-me à história e embelezo este universo de antanho com os meus
próprios fios e sabores, contribuindo assim para validar este refúgio
solitário, ligando-nos ainda mais a ele. Evoco uma terra distante onde o demónio
prospera malgrado a abundância de bagas e ervas, onde os espíritos se ocultam nas
folhas outonais e nas lágrimas. E nos prazeres intensos, penso. Vem, minha esposa
adorada, vem passear comigo no meu passado». In Dora Levy Mossanen, A Cortesã,
2005, tradução de Lucília Rodrigues, Difel, 2006/2007, ISBN 978-972-290-860-3.
Cortesia de Difel/JDACT