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Tinha acompanhado Giuliano até casa, no Palácio Medici, através de ruas fedorentas
e vielas abandonadas, enquanto outros apoiantes dos Medici perseguiam os conspiradores
e os abatiam nas ruas, como porcos. E agora? Perguntara-se Guid’Antonio. E
agora? Tinha recebido a resposta rapidamente sob a forma de um cargo de embaixador
na corte francesa. Era a sua recompensa pela amizade firme e a lealdade para
com os Mesdici, que era a primeira família de Florença, embora oficiosamente. Mas
seria a recompensa realmente merecida? De vez em quando, tentava contar a Lorenzo
o que acontecera naquele domingo sangrento. E de cada uma das vezes encerrara as
palavras dentro de si, consumido pela culpa. Desde a morte de Giuliano na catedral,
o rosto de Lorenzo Medici era mais atento e a pele cor de azeitona tornara-se sobrenaturalmente
pálida. Na verdade, todos os homens tinham os seus segredos.
Os seus
aposentos estavam agora mais quentes, a atmosfera bastante mais leve, embora do
lado de lá das janelas o céu sobre Plessis-les-Tours parecesse sombrio e húmido.
Era de manhã. Dezanove de Junho de 1480. Daí a instantes o seu sobrinho, Amerigo
Vespucci, entraria nos aposentos ricamente decorados que o rei Luís XI atribuíra
a Guid’Antonio, muito animado, com entusiasmo e energia, ansioso por começar a viagem
através dos Apeninos que desciam até à península de Itália e até à Toscana. Andiamo,
tio Guid’Antonio! Vamos! Mal posso esperar por deixar este tempo francês que nos
encolhe as partes baixas! E foi assim que o embaixador Guid’Antonio Vespucci balançou
os pés para fora do colchão de penas e pegou na camisa e nas calças de viagem.
Ao levantar-se, viu-se a si próprio e a Amerigo a sair para a chuva que caía lá
fora e a correr até aos estábulos, onde Amerigo já tinha os dois cavalos selados
e à sua espera. Viu-se a sacudir o manto e a puxar o capuz para cima da testa, com
as bainhas oleadas a pender sobre o rosto. Desconfortável e com o espírito atormentado,
viu o chão a mover-se por baixo de si enquanto olhava de relance para as nuvens
que escureciam e cavalgou pela tempestade dentro.
Florença,
três semanas mais tarde…
Guido’Antonio
sentia-se como um fantasma a pairar junto ao portão do pátio, nas etéreas horas
que antecediam o alvorecer. Mergulhadas na neblina, as oficinas dos fiandeiros,
dos tintureiros e dos construtores de teares que se alinhavam na Borg’Ognissanti,
a Rua de Todos os Santos, estavam silenciosas e as águas dos moinhos paradas. O
único som que se ouvia era o eco débil dos cascos dos cavalos a bater nos seixos
molhados da estrada, enquanto um cansado mas satisfeito Amerigo levava Flora
e Bucephalus para o outro lado do Palácio Vespucci, em direcção aos estábulos
da família. Mas não, afinal não estava assim tudo tão silencioso, nem tão desprovido
de movimento. Do local onde estava parado, como um vulto hesitante junto do
portão de ferro forjado, conseguia ver o fontanário no jardim do palácio e ouvir
o suave gorgolejar da água que escorria pela boca do leão de pedra. De cada um dos
lados do portão ardiam tochas. Sob a 1uz difusa, procurou a chave na bolsa. Por
entre o tilintar de moedas, os seus dedos encontraram a chave; introduziu-a na fechadura
apenas para constatar que não funcionava. Deu-lhe uma volta, retirou-a, soprou-lhe
e tentou girá-la novamente na fechadura, sem sucesso. Oh, Deus, murmurou. Mestre
Guid’Antonio, murmurou o vulto, afastando-se das sombras do jardim. Estou aqui.
Só um momento, por favor. Não era Deus, mas o criado de Gluid’Antonio, Cesare Ridolfi,
que destrancou a fechadura e abriu o portão fazendo ranger as dobradiças. Um sorriso
caloroso iluminou o rosto do jovem homem.
Mestre
Guid’Antonio, bem-vindo a casa. Obrigado, agradeceu Guid’Antonio, abraçando Cesare
e dando-lhe uma palmadinha nas costas. Mas o que é isto? Gesticulou em direcção
à fechadura, questionando-se que força sobrenatural teria murmurado ao ouvido
de Cesare Ridolfi que o mestre Guid’Antonio e Amerigo chegariam a casa tão cedo
naquele dia. Mais do que isso, que Guid’Antonio precisaria de que lhe abrisse o
portão do pátio. Mudou, disse Cesare. Como tantas outras coisas. Abriu os braços,
abarcando o alvorecer e as estrelas que apareciam por detrás das nuvens escassas.
Mas agora já está em casa. Quer tomar um banho para começar este dia interminável?
Interminável? Guid’Antonio sentia-se demasiado cansado para fazer perguntas. Não.
Vou começar por ver a minha mulher. Ah. Com um sorriso ligeiro, Cesare voltou a
mergulhar nas sombras de onde tinha saído». In Alana White, O Mistério
das Lágrimas da Virgem, 2012, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-847-096-6.
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