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Segundo nos é dado a conhecer, o regimento eborense, transportado para a
Covilhã pelo mercador Jorge Martins após o assentimento de Luís, compõe-se de
uma vintena de documentos atestando os privilégios alcançados pelos mesteres de
Évora durante um período situado entre os reinados de Duarte I e de João III. A
maior parte dos diplomas corresponde a benefícios dispersos outorgados pela
coroa das mais diversas naturezas, de que são exemplo os mais antigos, que
datam das Cortes de Leiria-Santarém de 1434, relativamente à generalização a
todos os mesteres do pronunciamento na câmara sobre a justa valia dos produtos
a almotaçar e à reafirmação a todos os oficiais da cidade para assegurarem
carniceiros em número suficiente para garantir carne em abastança para o povo,
assim como almotacés para a distribuir equitativamente. Porém, outros
documentos há mais estruturantes, segundo a autora, como é o caso daquele que
data de 1 de Agosto de 1451, atestando uma reunião em que vinte e quatro
mesteirais, em representação dos mesteres da cidade, constituíram um regimento
para ordenar novos estatutos e eleger seis pelouros (por cada seis anos, em
cada qual exerceriam um secretário e um tesoureiro) para administrar a bolsa
que pagaria o serviço de escolta de prisioneiros e o de transporte de dinheiros
régios. Mas, como encerram as disposições, aqueles procuradores não se
limitavam a administrar a bolsa, estando igualmente investidos na função,
institucionalmente (bem) mais importante, de representação em Cortes, fazendo
ouvir a voz do povo em paralelo aos antigos procuradores concelhios, a presença
dos procuradores do povo miúdo de Évora nas Cortes de Lisboa de 1439 leva Maria
Ângela Beirante a sustentar que esta prerrogativa dos mesteirais eborenses
remontaria, no mínimo, ao governo de Duarte I. Nesta esteira, outro diploma de
suma importância, que cabe aqui destacar, será aquele que foi apresentado nas
Cortes de Lisboa de 1459 pelo povo miúdo, através do qual os mesteirais obtêm
de Afonso V o direito de estar na câmara em vereação com os oficiais do
concelho, passando a intervir (permanentemente) no governo local. Contudo, como
é dado a conhecer pelos demais diplomas, estas conquistas dos homens dos
mesteres foram objecto de grande resistência por parte da oligarquia urbana,
que nas Cortes de Évora de 1490, quando João II precisou do apoio dos
procuradores das vilas e cidades para o casamento do príncipe herdeiro,
conseguiu da coroa que os procuradores do povo deixassem de estar em vereação,
situação que só será revertida completamente após alvará de João III, em 22 de
Julho de 1529.
Ao
abordar a implantação do regimento na Covilhã, em cuja câmara o instrumento foi
recebido a 14 de Fevereiro de 1535, Maria Ângela Beirante detalha-nos o
interessante acto formal da eleição dos Vinte e Quatro dos Mesteres na
vila beirã, na presença do juiz de fora (em representação do infante) e após
chamada por pregão. Para uma representação equitativa, a autora salientou como
se dispôs que os profissionais dos ofícios fossem escolhidos em proporção aos
mesteres da vila, resultando da eleição: quatro mercadores, dois paneiros, dois
tecelões, dois tecelões, dois tintureiros e tosadores, um surrador, dois
ferreiros e ferradores, um ourives, três almocreves, um moleiro, um pedreiro e
um oleiro. Ficamos ainda a saber como os vinte e quatro eleitos, que juraram
sobres os Evangelhos em maneira que por sua mingoa e negligencia a dita Republica
nem pouo desta uilla não receba detrimento nem perda alguma, passaram a
votar os dois procuradores que os representariam na vereação naquele ano, bem
como os pares que lhes sucederiam nos cinco anos seguintes, note-se que se
previa, para evitar vícios ou corrupções, a tiragem à sorte do pelouro que ia
ser atribuído à dupla em exercício no início de cada ano. Embora só conheçamos
registos de eleição até 1552, a autora mostra-nos como não tardou em
manifestar-se a estrutural oposição da oligarquia urbana, dinâmica essa que, de
resto, se perpetuaria durante muito tempo, o que Maria Ângela Beirante chega a
atestar com recurso a documentação das Cortes de 1641.
Por
último, somos levados por uma caracterização económico-social dos fundadores da
instituição dos Vinte e Quatro da Covilhã. Analisando a lista dos
mesteirais presentes na eleição inicial de 1535, bem como o número de
representantes eleitos por sectores profissionais, a autora sustenta
detalhadamente a preponderância do sector do têxtil, da produção à
comercialização, salientando o importante papel que os cristãos-novos terão
assumido nesta área, teria mesmo partido dos profissionais deste ramo, de
acordo com a mesma interpretação, a solicitação do regimento ao infante Luís.
Por oposição, Maria Ângela Beirante destaca pela fraca representatividade nos
primeiros Vinte e Quatro a pouca expressão de alguns mesteres na vila,
como sucedia ao nível dos couros e dos metais, assim como na alimentação, com
estas necessidades a serem supridas pelos almocreves, cujo grupo apresentava
até alguma dimensão. Na esteira da autora, certo é que a partir de 1535, e até
pelo menos o terceiro quartel do século (aquando da grande perseguição
inquisitorial), a Covilhã alcançou o seu auge na transformação e venda de
produtos da área dos têxteis, tornando-se uma referência no contexto de toda a
comarca e do próprio reino. Em jeito de conclusão, podemos afirmar com
segurança que o livro Ao serviço da
República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma
dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535), de Maria Ângela Beirante, veio
fazer luz no quadro historiográfico nacional no que diz respeito à investigação
sobre os mesteirais na Idade Média. Tomando por objecto as urbes de Évora e da
Covilhã, aqui relacionadas pelo regimento dos Vinte e Quatro dos Mesteres,
a autora traçou, gizou um estudo bastante completo, com abordagens de natureza
económica, social e institucional em torno dos profissionais dos ofícios entre
os finais da medievalidade e os alvores da Idade Moderna. Estruturado com
clareza, o trabalho apresenta uma escrita simples ao nível do texto, tantas
vezes acompanhado de quadros que sistematizam a informação tratada, facilitando
assim assimilação da matéria pelo leitor. Para o público académico, em
particular aquele que investiga nas áreas da história urbana, económica ou
social, serão certamente bons pontos de partida as imensas notas de rodapé que
sustentam o texto e que remetem para uma plêiade de fontes, boa parte delas de
arquivos nacionais e municipais, para além de um vasto conjunto de estudos,
portugueses e estrangeiros.
Em
suma, através desta metódica investigação ficou claro como a afirmação dos
mesteirais eborenses conduziu, no século XV, à obtenção de um amplo conjunto de
privilégios políticos, garantidos juridicamente pela coroa, os quais seriam
adoptados pelos homens dos ofícios da Covilhã, após o assentimento do infante
Luís, no início do segundo quartel de Quinhentos, quando o protagonismo dos
seus mesteres reclamava também uma maior intervenção institucional. Em boa
medida pelo seu papel económico, como se demonstrou com todo o rigor, os
mesteirais lograram impor-se, numa dinâmica que os opunha tendencialmente às
oligarquias urbanas, conseguindo assim numa e noutra comunidade o almejado
assento nas vereações municipais e, mais ainda, a representação do povo miúdo
em Cortes. Por conhecer ficou, como concluiu a autora, por falta de fontes, a
forma, decerto maleável, como se terá aplicado o regimento dos Vinte e
Quatro eborense na vila beirã, tendo em conta as diferenças na organização
dos trabalhos: enquanto na cidade alentejana os mesteirais eram essencialmente
fabricantes, como os profissionais do sector do couro, na Covilhã o grosso dos
homens dos ofícios poderia ser ou não corresponder a fabricantes, como era o
caso dos mercadores e dos paneiros, não devendo por isso estar sujeitos às
mesmas restrições lucrativas. Porém, com este estudo, para além dos contextos
estudados, espera-se chamar à atenção da historiografia nacional para a
importância dos homens das artes mecânicas, que, de acordo com a
filosofia medieval, eram considerados como parte integrante dos pés que
sustentavam a sociedade e que, como tal, carregavam uma missão importante na
consecução do bem-comum». In António Martins Costa, Recensão: Maria
Ângela Beirante. Ao serviço da
República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma
dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535), Lisboa, Centro de Estudos
Históricos, 2014, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Universidade de
Coimbra, Faculdade de Letras, Centro de História da Sociedade e da Cultura, IEM,
Revista Medievalista, Nº 20, Julho-Dezembro 2016, ISSN 1646-740X.
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