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de wikipedia
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Já no segundo capítulo do livro somos transportados para a Covilhã medieval,
acerca da qual Maria Ângela Beirante começa por traçar, com recurso a múltiplos
documentos e estudos conhecidos, um interessante enquadramento histórico com
início no período da Reconquista, no século XII. A autora estabelece
desde cedo um paralelismo com a cidade de Évora, cujo foral servira de modelo
ao primeiro da vila beirã, outorgado por Sancho I em 1186, tendo em conta uma
idêntica realidade económico-social, então relacionada com a transumância.
Dotada de um vasto termo, e animada em boa parte pelo comércio fronteiriço praticado
nas suas feiras, a Covilhã é-nos apresentada como uma comunidade em franca
consolidação até aos finais da Idade Média, evolução essa corroborada pelos
estudos acerca das suas estruturas defensivas e religiosas, além das
investigações de natureza institucional. Mas, como explica Maria Ângela
Beirante, a notoriedade alcançada no século XV pela vila beirã, onde a coroa, a
avaliar pelas inquirições de 1395, era grande proprietária, fez com que se
tornasse objecto de sucessivas doações a grandes casas senhoriais, determinando
o seu futuro: após a conquista de Ceuta de 1415, a Covilhã passou a integrar o
senhorio do infante Henrique, prosseguindo junto da casa de Viseu até à
decapitação do duque Diogo, em 1483, transitando para o património de Manuel I,
ainda duque de Beja.
Todo
este processo de consolidação da vila beirã baixo-medieval, nas palavras da
autora, teve como motor os mesteirais. Apesar da escassez de fontes, foi
possível obter relativamente ao período balizado entre os séculos XIII e XV,
uma vez mais, com base quer nas referências directas da documentação, quer nos
indícios dos topónimos, uma pequena amostragem de quase três dezenas de homens
dos mesteres, a qual nos sugere um predomínio dos profissionais das peles e do
couro (com oito mesteirais identificados, decerto relacionados com a economia
ganadeira e pastoril da geografia serrana), seguidos pelos mercadores (seis),
pelos mesteirais da alimentação (seis) e, por fim, pelos trabalhadores dos
metais (três) e do barro (três). Seria, porém, entre os finais de Quatrocentos
e as primeiras décadas da centúria seguinte que a Covilhã acusaria uma expansão
social e económico vertiginosa, conforme atesta a autora ao estabelecer nexos
entre a inquirição de Manuel I de 1496, o foral manuelino de 1510 e o
numeramento de João III de 1527. Na mira dos indicadores fiscais e demográficos
daquelas fontes somos levados a constatar dados impressionantes como, por
exemplo, os 223 256 reais recolhidos ao nível dos direitos régios naquela vila
nos finais do século XV, colocando-a no segundo lugar de toda a Beira, à frente
da Guarda e de Castelo Branco; ou os 3.500 habitantes urbanos e os 12.964
moradores rurais que residiam no concelho no início do segundo quartel de
Quinhentos, fruto de um crescimento populacional de 71 % em trinta e um anos,
que convertia a Covilhã no município no mais povoado de toda a comarca.
Esta
extraordinária expansão nos alvores da modernidade deveu-se em boa medida,
segundo este estudo, ao crescimento da já importante comunidade judaica local,
num primeiro momento, após a expulsão castelhana de 1492, acabando os seus membros
por se baptizarem e adoptarem nomes cristãos na Covilhã, na sequência da
conversão forçada das minorias em Portugal em 1497. À situação fronteiriça, a
vila aliava condições comerciais atractivas como a organização de conhecidas
feiras e a isenção de portagens para os seus moradores por todo o reino, o que,
na interpretação da autora, decerto terá convencido os judeus, entretanto
cristãos-novos, que ali assumiriam um papel relevante no desenvolvimento dos
mesteres da área do têxtil, em particular. Só tendo em conta esta realidade da
vila, populosa e pujante, se percebe o alcance da sua doação ao infante Luís
por seu irmão João III, justamente em 1527, num claro reconhecimento pelo papel
político e militar ao serviço do reino daquele que ficou conhecido, nas artes e
nas ciências, como um verdadeiro príncipe da Renascença.
Por
fim, o terceiro capítulo do livro conduz-nos à observação do regimento dos Vinte
e Quatro de Évora, que em Janeiro de 1535 os mesteirais covilhanenses
solicitam a Luís por modelo a instituir na vila beirã, na esperança de obterem
um reconhecimento político condizente com o seu protagonismo económico. Obtido
o assentimento do infante, como atesta o alvará de 30 do mesmo mês, aqueles
estatutos vinham confirmar, no dizer de Maria Ângela Beirante, a familiaridade
de foros e costumes entre as duas localidades, a par da sensibilidade e o
pragmatismo de Luís em relação à coisa pública, por um lado, e da
preferência da forma de organização dos mesteres de Évora sobre outras vilas e
cidades pelos profissionais covilhanenses, por outro lado. É precisamente para
melhor compreensão do decalque do Regimento dos Vinte e Quatro dos Mesteres
da cidade alentejana para a Covilhã, com todos as liberdades e garantias que
significava, que a autora trata separadamente o regimento, no contexto de
Évora, para depois abordar a instituição do mesmo na vila beirã e a eleição dos
primeiros Vinte e Quatro». In António Martins Costa, Recensão: Maria
Ângela Beirante. Ao serviço da
República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma
dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535), Lisboa, Centro de Estudos
Históricos, 2014, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Universidade de
Coimbra, Faculdade de Letras, Centro de História da Sociedade e da Cultura, IEM,
Revista Medievalista, Nº 20, Julho-Dezembro 2016, ISSN 1646-740X.
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