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Primavera
de 1453
«(…)
Ele abanou a cabeça e disse exactamente o que eu queria ouvir. Não, não era
bonita, não era uma menina bonita, não era feminina; mas irradiava luz. Assenti
com a cabeça. Era o que eu sentia, nesse preciso momento, compreendia..., tudo.
E ela continua a combater? Deus vos abençoe, pois sois um pouco tonta. Não: ela
está morta. Morta, há quanto tempo... Há quase vinte anos. Morta? A maré mudou para
ela, depois de Paris; fizemo-la recuar nas próprias muralhas de Paris, mas foi por
pouco... Imaginai! Ela quase conseguiu conquistar Paris! E, no final, um soldado
da Borgonha obrigou-a a desmontar do seu cavalo branco, numa batalha, contou o
pedinte num tom factual. Pediu-nos um resgate por ela, e nós executámo-la.
Queimámo-la na fogueira, por heresia. Eu estava horrorizada. Mas dissestes que
ela era guiada por anjos. Seguiu as vozes deles até à morte, afirmou ele
terminantemente. Mas eles examinaram-na e declararam que ela, de facto, era virgem.
Ela era realmente Joana, a Donzela. E ela acertou, quando previu que iria ser derrotada
na França. Creio que agora estamos perdidos. Ela transformou o rei deles num homem,
e constituiu um exército com os soldados dele. Não era uma rapariga comum. Não tenho
esperança de vir a conhecer outra como ela. Já estava em chamas muito antes de a
colocarmos na pira. Estava a arder, com o Espírito Santo. Respirei fundo. Eu sou
como ela, sussurrei-lhe. Ele baixou os olhos para o meu rosto enlevado e riu-se.
Não, isto são histórias antigas, disse. Não têm nada que ver com uma rapariga
como vós. Ela está morta e em breve será esquecida. As cinzas dela foram espalhadas
para que ninguém lhe pudesse construir um santuário. Mas Deus falava com ela, com
uma rapariga, murmurei. Não falava com o rei, nem com um rapaz. Falava com uma rapariga.
O velho soldado concordou com a cabeça. Não tenho dúvidas de que ela estava certa
disso, afirmou. Não duvido que ela ouvisse as vozes dos anjos. Devia ouvir. Senão,
não teria feito o que fez. Ouvi a voz esganiçada da minha preceptora a chamar-me,
da porta da frente da casa, e voltei a cabeça por um momento, enquanto o soldado
pegou na sua trouxa e a balançou para a apoiar nas costas.
Mas isso
é verdade?, perguntei com uma urgência súbita, quando ele começou a caminhar com
passos largos e rápidos em direcção ao pátio dos estábulos e ao portão que dava
para a rua. São histórias de soldados, disse ele, num tom desinteressado. Podeis
esquecê-las e esquecê-la a ela, e sabe Deus como ninguém se irá lembrar de mim.
Deixei-o sair, mas não me esqueci de Joana, e nunca a esquecerei. Rezo ao seu nome
para que me oriente, fecho os meus olhos e tento vê-la. Desde esse dia, é dito a
cada soldado que aparece à porta de Bletsoe a pedir comida que aguarde, porque a
pequena lady Margarida quer falar com ele. Pergunto-lhes sempre se estiveram em
Les Augustins, em Les Tourelles, em Orleães, em Jargeau, em Burgency, em Patay,
em Paris? Conheço as vitórias dela tão bem como as aldeias vizinhas de Bedfordshire.
Alguns dos soldados estiveram nessas batalhas; alguns deles chegaram a vê-la. Todos
mencionaram uma rapariga pequena montando um cavalo enorme, com um estandarte esvoaçando
acima da sua cabeça, vislumbrado quando a batalha se encontrava no seu momento mais
aguerrido, uma rapariga que parecia um príncipe, que jurara trazer a paz e a vitória
ao seu país, entregando-se ao serviço de Deus, nada mais do que uma rapariga,
nada mais do que uma menina como eu: mas uma heroína». In Philippa Gregory, A Rainha
Vermelha, 2011, Civilização Editora, Porto, 2011, ISBN 978-972-263-013-9.
Cortesia
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