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Ora, foi mais ou menos por essa altura, conforme constatei mais tarde, quando enfim
acertei datas e juntei as peças do puzzle, que a Sara me começou a trair, isto é,
a trair a nossa relação. E digo trair a relação, porque entendo, à semelhança de
muitas pessoas, e para usar mais um lugar-comum, que nas horas e circunstâncias
em que somos desleais com os outros, também o somos com nós próprios. Não está de
acordo? Desculpe, mas já reparei que olhou duas vezes para o relógio, o que quer
dizer que está na hora de acabarmos a sessão, não é?... Mas deixe-me então dizer
só mais uma coisa, talvez um bocado estúpida; uma daquelas coisas que a generalidade
dos homens atraiçoados provavelmente lhe costuma confidenciar, como insólito desabafo:
a Sara traiu-me com uma das criaturas mais frívolas e mesquinhas que conheci na
vida. E era homossexual, percebe? Ou melhor: não era completamente assumido, mas
tendencialmente militante. Não que eu tenha nada contra os homossexuais, mas
achei isso uma ironia fantástica... Se conheci a criatura? Sim, conheci-a mais tarde
num encontro acidental, já muito depois da minha relação com a Sara ter acabado.
Mas desse encontro prefiro não falar, porque a verdade é que isso é irrelevante
para o que aqui me trouxe. Haverá outras coisas que, embora tenham ocorrido há muitos
anos, talvez possam ser mais interessantes para a doutora fazer a avaliação do meu
caso, na sua totalidade. E dessas eu gostaria de lhe falar. Claro, Rafael, podemos
vir a falar disso e de muito mais; do que quiser e se quiser. Em relação ao que,
entretanto, me contou, percebe-se claramente que houve um tempo em que criou expectativas
demasiado altas, que falharam. E quando assim acontece as situações complicam-se.
E é por isso que agora se sente tão triste, tão angustiado e com a auto-estima muito
em baixo. Mas se de facto estiver disposto a prosseguir o tratamento, e eu acho
que precisa dele, agradeço-lhe então que passe pela recepcionista para marcar
uma nova consulta para a semana. Para já não vou medicá-lo. Preciso primeiro de
ter mais dados; de dados concretos que me levem a avaliar melhor o seu caso em toda
a dimensão. Muito bem... Vá lá, e esforce-se um bocadinho para ganhar um pouco mais
de ânimo, de tranquilidade emocional; tente relativizar os problemas que o
trouxeram cá, eu sei que isso é difícil, mas veja se consegue ocupar o seu tempo
da melhor maneira possível. Ocupe-o sobretudo com coisas de que goste ou valham
a pena para si. Obrigado, doutora. De nada, Rafael. Até para a semana. Até para
a semana.
Já na
rua, Rafael teve a sensação de que saíra do consultório em pior estado do que aquele
em que lá havia entrado. O facto de a psiquiatra se ter limitado a ouvir com aparente
frieza o seu testemunho deixou-o profundamente inquieto. Ele já devia saber que
em nenhuma circunstância os psiquiatras fazem juízos de intenção nos processos de
terapia, que nunca dão conselhos tendenciosos, e, no entanto, acreditara, como se
de uma ilusão infantil se tratasse, que a médica a quem recorrera por indicação
de um amigo o ajudaria a encontrar, logo na primeira sessão, um novo sentido para
a sua conturbada existência. Só que isso não se verificara. Vagueando pelas ruas
da cidade, cansado, sofrido, Rafael tentava, a custo, ordenar ideias, recordar-se
de tudo o que havia contado à psiquiatra, mas por muito esforço que fizesse não
conseguia. Apenas se lembrava de uma ou outra coisa dita sob forma avulsa, descontextualizada,
certamente sem nenhum interesse para uma boa avaliação do seu estado. Mais do que
nunca, sentia-se profundamente infeliz, sem rumo nem vontade, devastado como um
soldado perdido num campo de batalha. Sobretudo porque em vez de se ter centrado
nas questões fundamentais, que com tanta cautela havia preparado nos dias
antecedentes, se escudara em banalidades, juízos de valor e preconceitos disparatados,
acabando assim por cair num discurso errático e nada objectivo.
E
disso tinha agora plena consciência. A mesma que o levava a considerar uma inutilidade
absoluta, talvez até uma perfeita estupidez, a confidência que fizera à médica
sobre as tendências homossexuais do homem com quem Sara o traíra. Podia ter dito
que ele era uma personagem insignificante, desprezível, intelectualmente menor,
e por aí se ficar. Se o tivesse feito, a psiquiatra teria compreendido logo, quer
por experiência profissional, quer por sensibilidade feminina, que um juízo desses
não significava mais do que um vago insulto, uma acusação débil, um argumento desajustado.
Mas não. O que Rafael pretendeu foi ir tão longe quanto possível na ofensa e no
propósito; magoar onde mais dói num homem culturalmente machista, tenha ou não tendências
homossexuais: o seu espaço íntimo e discreto. O que ele quis, enfim, foi depreciar,
ultrajar e reduzir a nada a criatura que mais odiava no mundo». In
José Manuel Saraiva, A Terra Toda, Porto Editora, Porto, 2011, ISBN
978-972-004-327-6.
Cortesia de
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