quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A Última tribo. Eliette Abécassis. «Mas há um pequeno pormenor... Oual? Shimon observou-me como se estivesse profundamente incomodado com o que me ia dizer. Foi há dois mil anos, anunciou»

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«(…) E então?,-perguntei. Encontraram-no há doze dias. Há doze dias... Onde? No Norte do país? Numa sinagoga restaurada no Golan? Perto de Quioto, num santuário. Quioto? No Japão. Mas, exclamei, o que tem isso a ver... Comigo?, concluiu Shimon pegando num palito, o que, no seu caso, era sinal de grande tensão nervosa. Continua... É muito simples. Como já te disse, agora estou no Mossad. Não ficarás decerto surpreendido se te disser que faço parte da secção internacional... Os serviços secretos... Estás a ver onde quero chegar? Roeu o palito, com ar de reflectir intensamente. Mas e eu, Shimon?! Pensaste em mim? Não sou um espião. Não tenho essa formação. E, além disso, que tenho a ver com o Japão? Pelo contrário, pareces estar perfeitamente treinado. Aprendeste no terreno, como se diz. Em Paris, em Nova lorque e aqui, em Israel... Diria mesmo que tens a melhor formação possível para este tipo de missão..., no terreno. Prefiro prevenir-te desde já... Ouve, é muito simples, interrompeu-me. Vou explicar-te tudo. Olhei para a fotografia. Morreu assassinado, provavelmente... Sim, foi assassinado. Mas há um pequeno pormenor... Oual? Shimon observou-me como se estivesse profundamente incomodado com o que me ia dizer. Foi há dois mil anos, anunciou. Como? Que dizes? Podes repetir? Estou a dizer-te que este homem morreu há dois mil anos. Assassinado. Escuta, Shimon, disse, levantando-me. Podes explicar-me ao que estás a brincar? O frio e a neve preservaram-lhe os ossos e os tecidos. Foi examinado na scanner e os investigadores detectaram uma sombra suspeita sob o ombro esquerdo que, aparentemente, se deslocou. O exame confirmou que a sombra era a ponta de uma arma cortante, talvez uma seta. Estás a seguir-me? Não muito bem. A lâmina entrou no corpo e paralisou o braço, cortando uma veia. A identidade do criminoso permanece um mistério. Suponho que a do homem também.
Não inteiramente. Aparentemente era de pele branca, apesar de tisnada. O frio também conservou pedaços da túnica que trazia. Além disso, encontraram isto nas suas mãos, disse Shimon, entregando-me uma segunda foto. Devolvi-lha sem sequer olhar para ela. É inútil. Não faço parte do caso. Não vou andar à procura do assassino de um morto há três mil anos... Dois mil. Além disso, assinalo-te que ele já não existe. Ou talvez exista, mas sob a mesma forma que este homem e, nesse caso... Talvez não..., murmurou Shimon, pensativo. Talvez não?, exclamei. Mas que foi que te deu? Acreditas em fantasmas? Ou na imortalidade? Um dos monges do templo onde o homem foi encontrado, desapareceu. Repito-te: não vejo o que tenho a ver com tudo isso. Shimon não parecia minimamente desconcertado. Calmo, sereno, esperava, sem dizer palavra. Passado um momento levantei-me para lhe indicar a saída. Ainda há outra coisa, disse, levantando-se. Se queres falar-me de dinheiro, repito-te que... E a propósito de Jane... De que se trata? Sabes onde ela está? Acaba de receber uma mensagem da CIA. Peguei na folha que ele me estendia com as fotos. Uma ordem de missão..., para o Japão!
Shimon inclinou-se para mim e entregou-me um bilhete de avião. Despacha-te. Não há tempo a perder... Mas que irei dizer ao meu pai? Preveniste-o? Ele consultou o relógio. Esta tarde, às dezoito e cinquenta. Tens aproximadamente doze horas para te despedires de toda a gente. Só então o meu olhar caiu num dos clichés. Estupefacto, descobri um manuscrito hebraico. Um manuscrito de Qumran num templo de Quioto, no Japão. Qumran, a trinta quilómetros de Jerusalém, no deserto de Judeia. Era aí que devia fazer as minhas despedidas. Qumran, reino da beleza, coração da minha alma, imensidade celeste, vestígio imenso da origem, da criação do mundo, sítio tão baixo e profundo que, para quem sabe inclinar-se, é possível ver a crosta terrestre a partir da elevada plataforma de calcário, entre os rochedos da terra da Judeia, diante da grande baía que domina o mar Morto. Sob o céu de Qumran, o solo é árido e o Sol é rei. Faz calor entre as rochas, faz calor na terra. Não há vento, nem ruídos, pode ouvir-se o passo do lagarto e o deslizar da serpente por entre as covas profundas e os sulcos dos desfiladeiros. Mais longe, em Ain Feshka, uma corrente de água dá de beber à terra seca e as suas torrentes alimentam a camada freática de Qumran.
E aí que vivo, é aí que escrevo: chamam-me Ary, o escriba. De olhos fixos no pergaminho, a mão apertando a pluma, escrevo. Dia e noite, escrevo: para mim não há horas, estações, calendário, pois a escrita, tal como o amor, é um mundo onde o tempo se eterniza, onde a duração prolonga o instante e o dilata, onde ninguém sabe quando chega a luz e o dia. Sou Ary, o escriba: para mim não há outra vida para lá de escrever, a sombra, ao abrigo do calor tórrido do grande lago, do seu reflexo ofuscante sob o céu e dos dias e das noites daqueles que caminham ao Sol. Tenho trinta e cinco anos e já sou velho, tantas foram as aventuras que vivi, longe do turbilhão das necessidades da vida, tanto viajei e meditei, pois não procurei ganhar a vida e, frequentemente, perdi-me ao Sol. Depois, pus o mundo entre parênteses para escrever a minha história, essa história particular, imensa e ínfima, essa história singular da qual não sou responsável e que se mistura à própria História. Procurei desde sempre a união, até posso dizer que lhe consagrei a minha vida. Sim, durante muito tempo errei pelos meandros do mundo, pelas passagens estreitas e pelas vias mais largas e se me perdi tantas vezes não foi por ter deixado de tentar encontrar o meu caminho. Presentemente vivo longe de todos, numa gruta secreta, num local afastado e desértico, a alguns quilómetros de Jerusalém, o chamado deserto da Judeia. Aí se elevam falésias de calcário que dominam o local mais baixo da terra, o mais sulfuroso, o mais denso em sal, o que conserva a vida, o local mais original e mais longínquo, o mais pequeno, apesar de imenso, esse local estranho e único, quase irreal, chamado Qumran». In Eliette Abécassis, A Última Tribo, 2004, tradução de Carlos Oliveira, Editora Livros do Brasil, Colecção Suores Frios, Lisboa, 2005, ISBN 972-382-763-8.

Cortesia ELBrasil/JDACT