Cortesia
de wikipedia e jdact
«Ninguém que tenha visto Catherine Morland em
sua infância poderia supor que ela tivesse nascido para ser uma heroína. Sua
situação na vida, o carácter de seu pai e de sua mãe, a sua própria pessoa e
seu ânimo, tudo se mostrava igualmente contra ela. Seu pai, um clérigo, não era
desafortunado ou pobre, um homem muito respeitável, embora seu nome fosse
Richard, e nunca fora bonito. Tinha uma considerável autonomia, além de dois
salários; e nem de longe era dado a travar as suas filhas. Sua mãe, dona
de um apropriado senso comum, tinha bom temperamento e, o que era mais notável,
uma boa constituição. Teve três filhos antes de Catherine nascer. E, ao invés
de morrer ao trazer esta última ao mundo, como seria de se esperar, ela ainda
viveu, viveu para ter mais outros seis filhos e vê-los crescer ao seu redor,
enquanto gozava de excelente saúde. Uma família de dez filhos sempre será
chamada de uma família admirável; em que há cabeças, braços e pernas
suficientes para o adjectivo. Mas os Morland tinham outro pequeno direito sobre
a palavra, pois eram, em geral, muito correctos, sendo que Catherine, por
muitos anos, foi tão correcta quanto os demais. Dona de compleição magra e
estranha, pele pálida, sem cor, cabelos pretos escorridos, e traços fortes,
excessivamente fortes para a sua pessoa. E não menos inapropriada para o
heroísmo parecia a sua mente. Ela era apaixonada pelas brincadeiras dos garotos
e preferia críquete não apenas em relação às bonecas, mas também às diversões
mais heróicas da infância, como cuidar de um rato do campo, alimentar um
canário ou regar uma roseira. Na verdade, ela não gostava do jardim. E se fazia
ramalhetes de flores era principalmente pelo prazer de enganar, pelo menos era
o que se supunha, pois ela sempre preferia aquelas proibidas de serem colhidas.
Tais eram suas propensões. E suas habilidades eram bem peculiares. Ela nunca podia
aprender ou compreender algo antes de ser ensinada. E, às vezes, nem mesmo
assim, pois era muito desatenta e, ocasionalmente, estúpida. Sua mãe levou três
meses para ensiná-la a repetir Beggar’s Petition (poema que encabeça o
livro Poems on Several Occasions, do reverendo Thomas Moss, publicado em 17699),
no entanto sua irmã mais nova, Sally, podia recitá-lo melhor do que ela. Não que
Catherine fosse sempre estúpida, de jeito nenhum. Ela aprendeu a fábula The
Hare and Many Friends (fábula de Esopo, transformada em poema por John Gay,
em 1727) tão rápido quanto qualquer garota na Inglaterra. Sua mãe queria que
ela aprendesse música, e Catherine estava certa de que gostaria disso, pois
adorava pressionar as teclas da velha e abandonada espineta (instrumento
similar a um piano ou um cravo, inventado por Giovanni Spinnetti, em 1503);
assim, começou aos oito anos, estudando por um ano apenas, pois já não
aguentava mais. A senhora Morland, que não insistia em tornar prendadas as suas
filhas, a despeito da incapacidade ou do fastio, permitiu que ela abandonasse
os estudos. O dia em que demitiu o professor de música foi um dos mais felizes
da vida de Catherine. Seu apreço por desenho não era muito maior, se bem que,
sempre que encontrava uma carta jogada fora por sua mãe ou qualquer pedaço de
papel, ela fazia o que podia, desenhando casas e árvores, galinhas e galos;
tudo parecendo a mesma coisa. Seu pai lhe ensinava a escrever e a fazer contas;
sua mãe, francês. Sua competência em qualquer destas disciplinas não era notável
e ela se esquivava das lições sempre que podia. Que carácter estranho e
irresponsável! Com todos esses sintomas de má conduta, ela não tinha um mau
coração ou um mau temperamento. Quase nunca era teimosa e muito menos
emburrada. Pelo contrário, muito bondosa com os menores, e raramente autoritária.
Ela era bem mais barulhenta e irrequieta; odiava o confinamento e a limpeza; e
amava, mais do que tudo, rolar pela verde encosta abaixo, atrás de sua casa. Assim
era Catherine Morland aos 10 anos.
Aos 15, as aparências se corrigiram. Começou a encaracolar
os cabelos e a ansiar por bailes, encorpou e seus traços suavizaram-se, com
exuberância e colorido. Seus olhos ganharam mais vivacidade e a sua figura,
mais imponência. Seu amor pelo desaire deu lugar a uma inclinação pela
sofisticação; à medida que crescia, tornava-se mais limpa e mais esperta. Agora
tinha o prazer de ouvir, às vezes, seu pai e sua mãe comentarem sobre o seu
aprimoramento pessoal. Catherine está se tornando uma garota muito bonita, ela
está quase encantadora. Eram palavras que agarravam os seus ouvidos, de vez em quando.
E como eram bem-vindos tais sons. Parecer-se quase encantadora é uma aquisição
mais prazerosa para uma garota de aparência rude, pelos primeiros quinze anos
de sua vida, do que para uma garota bonita desde o berço. A senhora Morland era
uma mulher muito boa e desejava que seus filhos tivessem tudo o que almejassem.
Mas estava sempre tão ocupada em cuidar e em ensinar os mais novos, que os mais
velhos eram deixados a cuidar de si mesmos. Deste modo, não era muito intrigante
que Catherine, que por natureza nada tinha de heróica em si, preferisse, na
idade de 14 anos, críquete, beisebol, montar a cavalo e correr pelos campos, a
livros, ou, pelo menos, livros educativos. No entanto, dado que nada como um conhecimento
útil poderia ser obtido disso e que eram apenas histórias e não reflexões, ela
nunca tinha qualquer objecção a livros. Mas, dos 15 aos 17 anos, ela estava planeando
para se tornar uma heroína». In Jane
Austen, Abadia de Northanger, 1803, 1818, Relógio D’Água, Clássicos para
Leitores de Hoje, 2016, ISBN 978-989-641-596-9.
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