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Uma
carta extraviada encontra o destinatário. 1992
«(…)
Aproximei-me dela, pondo-lhe o braço em redor dos ombros, tendo cuidado para
não lhe sujar o vestido de sangue. Mas ela não disse nada. Não podia, disse-me
mais tarde, não naquele momento. Ficou ali parada, rígida, enquanto as lágrimas
lhe caíam dos olhos pelas faces e ela agarrava o pequeno e estranho envelope,
de um papei tão fino que conseguia divisar o canto da carta dobrada lá dentro,
bem apertado contra o seu peito. De seguida, desapareceu escada acima para o
seu quarto, deixando instruções nervosas acerca da ave e do forno e das
batatas. A cozinha fixou-se num silêncio magoado em redor da sua ausência e eu
fiquei muito quieta, deslocando-me muito devagar, como se não a quisesse perturbar
ainda mais. A minha mãe não costuma chorar, mas aquele momento, a sua
perturbação e o choque que adveio, pareceu-me estranhamente familiar, como se
já ali tivéssemos estado. Após quinze minutos durante os quais descasquei
batatas de várias formas, ponderei em possibilidades quanto ao remetente da
carta e cogitei na melhor forma de agir, decidi, por fim, bater à porta do seu
quarto e perguntar-lhe se queria um chá. Nessa altura, já se recompusera e
sentámo-nos em frente uma da outra à mesinha com tampo em fórmica da cozinha.
Enquanto eu fingia não reparar que ela estivera a chorar, começou a falar do
conteúdo do sobrescrito. Uma carta, disse, de alguém que eu conheci há muito
tempo. Quando não passava de uma menina com 13, 14 anos. Surgiu-me uma imagem
na cabeça: uma memória vaga de uma fotografia na mesinha de cabeceira da minha avó
já velhinha e moribunda. Três filhos, sendo que a minha mãe era a mais nova,
uma menina de cabelo escuro e curto, empoleirada numa coisa qualquer em
primeiro plano. Era estranho, fizera companhia à avó centenas de vezes ou mais,
mas agora não conseguia lembrar-me das feições daquela menina. Quiçá os filhos
não se interessem realmente em quem os pais eram antes do seu nascimento; a menos
que aconteça algo em particular que lance uma luz sobre o passado. Beberiquei o
meu chá, aguardando que a mãe prosseguisse. Não sei se te contei muita coisa
dessa época, contei? Durante a guerra, a II Guerra Mundial. Foi uma época
terrível, era muita confusão, muito se desfez. Parecia..., suspirou, bem,
parecia que o mundo jamais voltaria à normalidade. Como se tivesse sido
afastado do seu eixo e nada mais fosse capaz de o repor no lugar certo. Envolveu
a beira fumegante da caneca com as mãos, olhando fixamente lá para dentro. A
minha família, a mãe e o pai, a Rita, o Ed e eu, vivíamos todos numa casinha na
Rua Barlow, junto a Elephant and Castle, e no dia a seguir ao rebentar da
guerra, nós, as crianças, fomos reunidas na escola, marchámos até à estação dos
comboios e fomos postas em carruagens. Nunca me esquecerei, todas com as nossas
etiquetas e máscaras e pacotes e as mães, que estavam com dúvidas, a correr
pela estrada abaixo até à estação, gritando para que o revisor deixasse os filhos
sair; depois gritavam aos filhos mais velhos para que tomassem conta dos
irmãos, para que não os perdessem de vista. Ficou um momento a mordiscar o
lábio inferior, enquanto a cena se desenrolava na sua memória. Deve ter sido
assustador, disse em voz baixa. Na nossa família, não temos o hábito de dar as
mãos, caso contrário teria tomado a mão dela na minha. Foi, ao princípio.
Tirou
os óculos e esfregou os olhos. Sem a armação, o seu rosto apresentava uma
expressão vulnerável, inacabada, como um pequeno animal noctívago confundido
pela luz do dia. Fiquei feliz quando ela voltou a pô-los e continuou. Nunca
tinha estado longe de casa, nunca passara uma noite longe da minha mãe. No
entanto, os meus irmãos mais velhos estavam comigo e, à medida que a viagem
prosseguia e um dos professores distribuiu tabletes de chocolate, começámos a
ficar todos mais animados, começámos a dar vivas e a encarar aquela experiência
quase como uma aventura. Consegues imaginar? Fora declarada guerra mas nós
cantávamos e comíamos peras em lata e olhávamos pela janela a jogar o Eu
Vejo. As crianças são muito resistentes, sabes? Por vezes até indiferentes.
Lá chegámos a uma terra chamada Cranbrook, onde fomos divididos em grupos e
postos em várias camionetas. Aquela onde me puseram e ao Ed e à Rita levou-nos
até à aldeia de Milderhurst onde entrámos em fila indiana num átrio. Aí,
aguardava-nos um grupo de mulheres da terra, de sorrisos postos nos rostos,
listas nas mãos e ficámos em fileiras enquanto as pessoas andavam à nossa volta
a fazerem as suas escolhas. Os mais novos depressa foram escolhidos,
especialmente os mais bonitinhos, As pessoas deviam julgar que dariam menos
trabalho, julgo eu, que não estariam tão impregnados pelo ar de Londres. Mostrou
um sorriso contrafeito. Não demoraram a perceber. O meu irmão foi logo escolhido.
Era um rapaz forte, alto para a idade, e os agricultores estavam desesperados
por mão de obra. A Rita foi escolhida pouco depois com uma amiga da escola. Aquilo
foi a gota de água. Estendi a mão e pousei-a sobre a dela. Oh, mãe. Não faz
mal. Tirou a mão e deu-me uma palmadinha nos dedos. Não fui a última a ser
escolhida. Alguns outros..., um rapazinho com uma doença de pele. Não sei que lhe
aconteceu, mas ainda ficou naquele átrio quando eu saí. Sabes, mais tarde e
durante muitos anos, forcei-me a comprar fruta tocada se fosse nisso que pegava
primeiro na mercearia. Não andava cá a ver as peças todas ao pormenor e a
devolvê-las à caixa se não estivessem em condições». In Kate Morton, As Horas
Distantes, 2010, Porto Editora, 2012, ISBN-978-972-004-355-9.
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