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Gesticulava amplamente ao falar, levantando a voz a ponto de gritar, o que
fazia estrategicamente com frequência. Pretendia claramente que o ralhete fosse
notado por todo o escritório, embora poucos para lá da divisória do cubículo
estivessem a prestar atenção à troca de palavras. Alexander suspirou,
afundou-se na sua cadeira e puxou o cigarro para si. Estaria muito mais
disposto a brigar, a ripostar energicamente e a retaliar se lá no fundo não
concordasse com as questões levantadas pelo miúdo. Ninguém queria saber destas
histórias, muito menos ele. Alexander tinha entrado para o jornal não por causa
do seu zelo, mas pela sua disponibilidade. Não se pode dizer que um homem a
caminho dos 40 anos e aproximando-se da meia-idade, com duas licenciaturas em
teologia e uma curta carreira como pároco, estivesse primorosamente preparado
para o século XXI. Quando finalmente renegou o colarinho branco e abandonou a
vida para a qual se tinha preparado desde a infância, desiludido com o conflito
inconciliável entre uma instituição que devia ser santa e os homens que a
dirigiam, que bastas vezes eram tudo menos isso, tinha-se deparado com um conjunto
limitado de opções. Ele não era um programador que deixava a Apple para ir para
a Google. Era um padre que saía da Igreja para um mundo que, a cada ano que
passava, tinha cada vez menos certezas quanto ao que a Igreja representava e
que estava cada vez mais convencido de que era anacrónica, desligada da realidade
e irrelevante.
Mas
Alexander tinha sido sempre um bom comunicador. Desde que não tivesse como
objectivo as áreas de grande visibilidade ou competitivas do jornalismo, tipo
pelo qual os jornalistas de vinte e tal anos lutavam e a que os repórteres mais
velhos se agarravam com unhas e dentes, o jornal era uma opção viável. Junte-se-lhe
o ângulo jornalisticamente sexy do ex-padre ressentido e seria o candidato certo
para a secção Vida Eclesiástica do La Repubblica, que, no fundo, mais não era
do que uma coluna de coscuvilhice sobre o que quer que conseguissem desenterrar
das entranhas obscuras dos assuntos eclesiásticos correntes.
E
pronto. Durante três anos tinha vasculhado os limites mais baixos daquilo por
que a atenção humana podia ser persuadida a interessar-se. Sim, ocasionalmente
havia escândalos sexuais, e a eleição de um novo papa, que tinha ocorrido
apenas l1 meses antes, e estes assuntos traziam sempre agitação e atenção. Mas
o resto do tempo..., o resto do tempo apenas podia aspirar a atingir um cume moderadamente
interessante no seu trabalho. E a maior parte dos dias estava perfeitamente
disposto a sentar-se na base dessa montanha, importando-se tanto com estas
coisas como o leitor habitual do jornal. Levantou o olhar vazio da secretária.
para sua infelicidade, o seu editor ainda lá estava. Alexander esperou pela
seguinte rajada de insultos coreografados, mas a cara vermelha de Laterza
estava lentamente a voltar à cor normal. Por instantes, parecia uma criança a quem
os pais tinham dito que tinha de fazer qualquer coisa boa pelo rapaz que vivia
ao lado, embora ele preferisse atá-lo a uma árvore e roubar-lhe a bicicleta. Vou
atribuir-te um trabalho, Trecchio. As palavras saíam como se Laterza sentisse repugnância
em dizê-las. Alexander estava surpreendido. A Direcção do jornal normalmente preferia
que fosse ele próprio a encontrar as suas histórias. Que tipo de trabalho?
Laterza franziu o sobrolho.
Aconteceu
qualquer coisa na Basílica de São Pedro, qualquer coisa que tem que ver com o
aleijado a pôr-se de pé. Há uma grande agitação na Internet desde o fim da
missa desta manhã. De certeza que já soubeste de alguma coisa. A agitação na
Internet não tem grande utilidade para mim, respondeu Alexander. Para mim é o
derradeiro bastião dos idiotas e da coscuvilhice. Tudo bem, mas esses idiotas e
coscuvilheiros têm andado aos saltos nas últimas duas horas e o alvoroço está a
alastrar. Laterza deitou-lhe um olhar de pena. Alguns gravaram vídeos. Estou
certo de que até tu consegues fazer uma história com isso.
Vaticano:
9h 31
Tranquem
as portas. Já! A voz do cardeal Secretário de Estado Donato Viteri era intensa
e ressonante. Há 23 anos que tinha esta função, a mais alta do Estado da Cidade
do Vaticano depois da do pontífice, tendo passado pelos reinados de três papas
diferentes. O homem alto de ombros largos era conhecido por não ser nem
simpático nem verboso: o tipo de administrador clerical mais velho, que quem
conhecia o Vaticano considerava da velha guarda e as multidões de fiéis de
todos os outros sítios raramente viam. Viteri era um homem cuja espiritualidade
era interior, nunca chegando à superfície em demonstrações de piedade ou reverência
explícita, um prelado que se sentia mais à vontade atrás de uma secretária do que
de um altar, que rezava com o mesmo tom pragmático com que dirigia as reuniões
ou supervisionava as funções políticas. Dizia ocasionalmente que o seu amor
pela Igreja se manifestava na maneira prática, incansável e assertiva com que
supervisionava os assuntos da mesma. Não dava sermões, mas ordens, e quando falava,
esperava ser obedecido. Que portas?
Christoph
Raber, o comandante da Guarda Suíça, estava junto dele, ainda com as coloridas
vestes cerimoniais que usara durante a missa que tinha acabado apenas minutos
antes. Com o posto de Oberst, coronel, o mais elevado de todos os postos
na Santa Sé e detido por apenas um homem, Raber era um oficial entroncado com
puro músculo a cobrir os ossos firmes que nem os tufos da vestimenta formal
conseguiam fazer parecer menos imponente. Na hierarquia do Vaticano, só o papa
e o próprio cardeal Viteri podiam dar ordens a Raber. Todas, respondeu o
cardeal, completando a sua ordem. Uma pausa longa e estranha. Mas lá está,
pensou Raber consigo próprio, tudo nessa manhã tinha sido estranho». In
Tom Fox, Dominus, 2015, tradução de Ângelo Santana, Topseller, 20/20 Editora,
ISBN 978-989-883-913-8.
Cortesia de
Topseller/20/20 Editora/JDACT