domingo, 15 de janeiro de 2017

O Anel dos Bórgia Michael White. «Mais importante, ensinara-lhe novas formas de matar. Juntos, haviam produzido poções assassinas, que traziam a morte com uma velocidade estonteante»

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Roma. Agosto de 1503
«O Papa Alexandre VI tinha uma cabeça semelhante a um enorme escroto. A gordura escorreu-lhe pelo queixo e as suas pupilas negras e geralmente cruéis dilataram-se enquanto contemplava o grande pudim doce colocado à sua frente. A sua filha, Lucrécia Bórgia, contemplou-o e sentiu um vómito subir-lhe pela garganta. Tinha apenas doze anos quando o pai lhe mostrara, pela primeira vez, as suas preferências sexuais. Fora obrigada a masturbar-se com um crucifixo enquanto o via sodomizar um criado de nove anos (maldito, mil vezes maldito). Quando o velho balofo atingira o orgasmo, grunhira como um porco-espinho. Ao lado do pai, sentava-se o seu irmão, César. Uma vez, depois de a ter mantido acordada toda a noite com a sua luxúria insaciável, gabara-se de haver assassinado dezenas de homens e de como um dia abateria o seu pai e tentaria aceder ao trono papal. Mas, agora, César Bórgia estava doente. Era o morbo gálico (nome pelo qual eram conhecidas as doenças venéreas, nomeadamente a sífilis). Toda a gente sabia. Tinha o rosto coberto de chagas purulentas e havia uma loucura nos seus olhos pior do que qualquer outra coisa que já lhe fora dado ver. A esquerda de Lucrécia, estava sentado um jovem alquimista, Cornelius Agrippa. Um rapaz terno de dezasseis anos, com uns olhos escuros e penetrantes, era, simultaneamente, o seu amante e companheiro de viagem pela estrada que conduzia ao conhecimento oculto. Agrippa ensinara-lhe muitas, muitas coisas: formas de conservar a sua beleza juvenil, formas de fazer com que todos os homens a adorassem. Mais importante, ensinara-lhe novas formas de matar. Juntos, haviam produzido poções assassinas, que traziam a morte com uma velocidade estonteante e não deixavam qualquer vestígio. O seu olhar recaiu por último em Domenico Gonzaga, o filho mais novo de Francesco II, marquês de Mântua. O rosto belo de Domenico começava precisamente a ostentar os sinais de excesso de boa vida. Ele e César, sabia, tinham brincado juntos em crianças, mas agora os dois homens desprezavam-se mutuamente. Fora o seu pai, o papa, quem arranjara a visita do filho do marquês, o último de uma longa lista de pretendentes à mão de Lucrécia. É claro que César os odiava a todos.
No final da refeição, Alexandre estava tão bêbedo que mal se aguentava de pé, mas Lucrécia podia ver que ainda lhe sobrava energia para o seu passatempo favorito. O modo como olhava para os dois escravos negros enquanto estes o ajudavam a levantar-se da cadeira era inequívoco: um olhar que ela vira muitas, muitas vezes. Confiara-lhe uma vez que os jovens negros que trouxera para o Vaticano o conseguiam satisfazer de formas que nada nem ninguém conseguia. Era estranho, pensou, como os homens da sua vida queriam partilhar consigo os seus segredos mais íntimos. Adorava a sensação de poder que isso lhe dava. Em breve ficou sozinha com Domenico. Estavam sentados perto um do outro, num sofá baixo. Ele fez deslizar um dedo pela face de Lucrécia. Na verdade, não sou assim tão feio, disse, com uma voz entaramelada, o hálito rançoso e os dentes e os lábios manchados de vermelho pelo vinho. Quem disse que éreis, senhor? Recusaste-vos a procurar o meu olhar, à mesa. Isso teria sido impróprio. Domenico deu uma sonora gargalhada, mas o seu rosto ficou sério quando se apercebeu de que Lucrécia mantinha o rosto impassível e a compostura. Perdoai-me, senhora, tossiu e ajeitou o colete. Foi o meu pai quem combinou esta visita, Domenico, e não eu, disse, calmamente. O vosso pai é rico e o meu extremamente avaro.
É verdade que o meu pai é um homem muito rico e eu sou o herdeiro das suas terras. Mas gostaria de pensar que há mais em mim do que o mero dinheiro e os bens. Aproximou-se dela e a sua respiração quente acariciou-lhe o pescoço. Voltou-lhe, rudemente, o rosto para o seu e beijou-a violentamente na lboca. Lucrécia podia cheirar o travo animal do seu suor. Antes de o conseguir deter, a sua mão subia-lhe pelas pernas. Lucrécia fez um número perfeito de quem tentava repeli-lo. Era uma actriz consumada que sabia que ultrapassava qualquer intérprete dos palcos de Roma. Sentiu um frémito súbito de orgulho. Nesse momento, era ela quem detinha a posição de poder, apesar de aquele tonto de gestos lentos pensar que era ele. Conhecia o seu poder desde a infância. E agora, aos vinte e quatro anos, estava em pleno florescimento e deliciava-se com o conhecimento de que ultrapassava qualquer rameira barata do gueto». In Michael White, O Anel dos Bórgia, 2009, Casa das Letras, 2010, ISBN 978-972-461-956-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT