sábado, 14 de janeiro de 2017

O Apogeu da Cidade Medieval. Jacques le Goff. «Aries compunha-se de quatro elementos, a cité, o burgo antigo, o burgo novo e o mercado, cada qual com sua muralha e sua administração»

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A cidade e o exterior. As muralhas
«(…) Nem todas as cidades medievais foram cercadas por muralhas; muitas só o foram inteiramente após 1340, sob o efeito da Guerra dos Cem Anos. Ao contrário, numerosas aldeias foram fortificadas. E, não obstante, a muralha foi o elemento mais importante da realidade física e simbólica das cidades medievais. Embora seja provável que motivos militares tenham estado na origem da construção das muralhas, nem por isso estas deixaram de constituir, inspiradas no modelo dos muros, antigos ou lendários, que definem um espaço sagrado da cidade, o elemento essencial para a tomada de consciência urbana na Idade Média. A muralha foi a base material da identidade urbana e estabeleceu uma dialéctica do interior e do exterior que dominou a actividade urbana, dialéctica que a cidade medieval ocidental não chegará a realizar plenamente, até a perfeita distinção entre o interior e o exterior. A cidade medieval situa-se entre dois tipos de cidades que souberam, com ou sem muralha, separar-se radicalmente do campo: a cidade antiga, que vivia na oposição urbs/rus e mantinha a rusticidade no exterior, e a cidade industrial e pós-industrial, que devorou o campo. Em ambos os casos, o que permanecia de natureza não passava de uma imitação sofisticada da natureza, os jardins na Antiguidade, os espaços verdes hoje. A cidade medieval permanece mesclada ao campo, deixando fora de suas muralhas subúrbios e um arrabalde plantados no campo, acolhendo no interior de seus muros, em compensação, pedaços de campo, terrenos cultivados, prados, espaços vazios e, ocasionalmente, camponeses refugiados. O termo cidade campestre, dado às mais permeáveis ao campo, pode aplicar-se, na realidade, a qualquer cidade medieval. Em Novembro de 1388, o cronista Froissart, dirigindo-se a Orthez em companhia do conde de Foix, Gaston-Phébus, passa por Tharbes. A vista da cidade inspira-lhe a descrição de um verdadeiro ideograma urbano: Tharbes e uma bela e grande cidade, situada em pleno campo e no meio de belos vinhedos; tem cidade, cité e castelo, fechados por portas, muros e torres, e separados um do outro. Para muitas cidades medievais, com efeito, é um problema alcançar a unidade a partir da multiplicidade dos núcleos que a princípio se justapuseram ou, em todo caso, da frequente dualidade que opõe uma cidade antiga, a cité, cidade episcopal, senhorial, com grande proporção de eclesiásticos, a uma nova aglomeração nascida do artesanato e do comércio, o burgo. E o que Yves Barel chama de cidades divididas e cidades reunidas, a que prefiro cidades justapostas e cidades unificadas.
Essas cidades duplas ou múltiplas, cada qual dentro de sua muralha, nem sempre chegam, ou só chegam tardiamente, a se reunir. Em Nevers, a reunião do burgo e da cité foi realizada já no fim do século XII, no interior de uma mesma muralha, mas cada comunidade conservou sua administração particular. Em Narbonne e Arras não houve muralha de reunião, se bem que burgo e cité fossem contíguos. Em Limoges, 500 metros separavam a cité do burgo Saint-Martial, que a ultrapassou em importância em 1182, data aproximada da construção de uma muralha mais vasta, e burgo e cité só vieram a fundir-se coagidos e forçados pela Revolução, em 1792. Aries compunha-se de quatro elementos, a cité, o burgo antigo, o burgo novo e o mercado, cada qual com sua muralha e sua administração. Só em 1623 eles se reuniram dentro de uma mesma muralha. Em Nice, à cidade alta cercada por uma muralha desde o século XII se juntam, ao longo do século XIII, novos bairros, que se reúnem para formar o Puy de la Mer (Podium maris), a cidade inferior ou cidade baixa, cercada, no começo do século XIV, por uma muralha que se articula com a muralha da cidade alta, mas sem fundir-se com ela nem englobá-la. Em Carcassonne, como vimos, a cité protegeu-se em três etapas. De 1228 a 1239, trata-se essencialmente de reparar e reforçar a velha muralha do Baixo Império. Após o cerco de 1240, para proteger a cité, São Luís fez destruir o burgo e os subúrbios que se apoiavam à muralha e mandou construir na outra margem do Aude uma cidade nova para os habitantes refugiados. Uma terceira campanha, entre 1280 e 1287, consolidou e alargou um pouco os muros da cité. No entanto, a dualidade das comunidades não impediu, muitas vezes, que se encontrassem para certos problemas terrenos de acordo, manifestando o espírito de unidade que penetrava cada vez mais os habitantes. Em Rodez o hopital du Pas, atestado em 1192 e situado na fronteira entre o burgo e a cité, devia prestar contas anualmente aos cônsules das duas comunidades». In Jacques le Goff, O Apogeu da Cidade Medieval, 1980, Livraria Martins Fontes Editora, 1989, 1992, ISBN 978-853-360-127-1.

Cortesia de LMartinsFontesE/JDACT