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A
cidade e o exterior. As muralhas
«(…)
Nem todas as cidades medievais foram cercadas por muralhas; muitas só o foram inteiramente
após 1340, sob o efeito da Guerra dos Cem Anos. Ao contrário, numerosas aldeias
foram fortificadas. E, não obstante, a muralha foi o elemento mais importante
da realidade física e simbólica das cidades medievais. Embora seja provável que
motivos militares tenham estado na origem da construção das muralhas, nem por
isso estas deixaram de constituir, inspiradas no modelo dos muros, antigos ou
lendários, que definem um espaço sagrado da cidade, o elemento essencial para a
tomada de consciência urbana na Idade Média. A muralha foi a base material da
identidade urbana e estabeleceu uma dialéctica do interior e do exterior que
dominou a actividade urbana, dialéctica que a cidade medieval ocidental não
chegará a realizar plenamente, até a perfeita distinção entre o interior e o exterior.
A cidade medieval situa-se entre dois tipos de cidades que souberam, com ou sem
muralha, separar-se radicalmente do campo: a cidade antiga, que vivia na
oposição urbs/rus e
mantinha a rusticidade no exterior, e a cidade industrial e pós-industrial, que
devorou o campo. Em ambos os casos, o que permanecia de natureza não passava de
uma imitação sofisticada da natureza, os jardins na Antiguidade, os espaços
verdes hoje. A cidade medieval permanece mesclada ao campo, deixando fora de
suas muralhas subúrbios e um arrabalde plantados no campo, acolhendo no
interior de seus muros, em compensação, pedaços de campo, terrenos cultivados,
prados, espaços vazios e, ocasionalmente, camponeses refugiados. O termo cidade
campestre, dado às mais permeáveis ao campo, pode aplicar-se, na realidade, a
qualquer cidade medieval. Em Novembro de 1388, o cronista Froissart,
dirigindo-se a Orthez em companhia do conde de Foix, Gaston-Phébus, passa por
Tharbes. A vista da cidade inspira-lhe a descrição de um verdadeiro ideograma
urbano: Tharbes e uma bela e grande cidade, situada em pleno campo e no meio de
belos vinhedos; tem cidade, cité
e castelo, fechados por portas, muros e torres, e separados um do outro. Para
muitas cidades medievais, com efeito, é um problema alcançar a unidade a partir
da multiplicidade dos núcleos que a princípio se justapuseram ou, em todo caso,
da frequente dualidade que opõe uma cidade antiga, a cité, cidade episcopal, senhorial, com grande proporção
de eclesiásticos, a uma nova aglomeração nascida do artesanato e do comércio, o
burgo. E o que Yves Barel chama de cidades divididas e cidades reunidas, a que
prefiro cidades justapostas e cidades unificadas.
Essas
cidades duplas ou múltiplas, cada qual dentro de sua muralha, nem sempre chegam,
ou só chegam tardiamente, a se reunir. Em Nevers, a reunião do burgo e da cité foi realizada já no
fim do século XII, no interior de uma mesma muralha, mas cada comunidade
conservou sua administração particular. Em Narbonne e Arras não houve muralha
de reunião, se bem que burgo e cité
fossem contíguos. Em Limoges, 500 metros separavam a cité do burgo
Saint-Martial, que a ultrapassou em importância em 1182, data aproximada da
construção de uma muralha mais vasta, e burgo e cité só vieram a fundir-se coagidos e forçados pela
Revolução, em 1792. Aries compunha-se de quatro elementos, a cité, o burgo antigo, o
burgo novo e o mercado, cada qual com sua muralha
e sua administração. Só em 1623 eles se reuniram dentro de uma mesma muralha. Em
Nice, à cidade alta cercada por uma muralha desde o século XII se juntam, ao longo
do século XIII, novos bairros, que se reúnem para formar o Puy de la Mer
(Podium maris), a cidade inferior
ou cidade baixa, cercada, no começo do século XIV, por uma muralha que se
articula com a muralha da cidade alta, mas sem fundir-se com ela nem englobá-la.
Em Carcassonne, como vimos, a cité
protegeu-se em três etapas. De 1228 a 1239, trata-se essencialmente de
reparar e reforçar a velha muralha do Baixo Império. Após o cerco de 1240, para
proteger a cité, São
Luís fez destruir o burgo e os subúrbios que se apoiavam à muralha e mandou
construir na outra margem do Aude uma cidade nova para os habitantes
refugiados. Uma terceira campanha, entre 1280 e 1287, consolidou e alargou um pouco
os muros da cité. No
entanto, a dualidade das comunidades não impediu, muitas vezes, que se encontrassem
para certos problemas terrenos de acordo, manifestando o espírito de unidade que
penetrava cada vez mais os habitantes. Em Rodez o hopital du Pas,
atestado em 1192 e situado na fronteira entre o burgo e a cité, devia prestar contas
anualmente aos cônsules das duas comunidades». In Jacques le Goff, O Apogeu da
Cidade Medieval, 1980, Livraria Martins Fontes Editora, 1989, 1992, ISBN
978-853-360-127-1.
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LMartinsFontesE/JDACT