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Contudo, vou dizer-te uma coisa: não és a única ama na paróquia. Há centenas de
mães adoptivas de primeira qualidade, que se bateriam por ter o direito de, a
troco de três francos semanais, amamentar este encantador recém-nascido ou
alimentá-lo a papas, sumo de frutas ou qualquer outra comida... Então, dê-o a
uma delas! ... Por outro lado, não é aconselhável passar, assim, uma criança
para outros braços. Quem sabe se irá dar-se tão bem com um leite que não seja o
teu? Está habituada ao odor dos teus seios e, é necessário que o entendas, ao
bater do teu coração. E o padre voltou a aspirar longamente esse bafo quente
que se desprendia da ama. Vais levar esta criança para tua casa, acrescentou,
tomando consciência de que as suas palavras não provocavam qualquer efeito
sobre a ama. Falarei deste assunto ao prior. Vou propor-lhe que, doravante, te
pague quatro francos por semana. Não!, recusou a ama. Bom. Digamos cinco,
então! Não! Mas, afinal, quanto é que queres mais?, gritou-lhe Terrier. Cinco
francos é imenso dinheiro como paga deste trabalho insignificante que consiste
em alimentar uma criança! Não quero dinheiro nenhum, redarguiu a ama. Só quero
o bastardo fora da minha casa. Mas porquê, boa mulher?, replicou Terrier e
voltou a remexer no cesto com as pontas dos dedos. É uma criança adorável. Tem
as faces rosadinhas, não chora, dorme bem e está baptizado. Está possuído pelo
Diabo! Terrier apressou-se a retirar a mão do cesto. Impossível!, exclamou. É
totalmente impossível que um recém-nascido esteja possuído pelo Diabo. Um
recém-nascido não é um ser humano, mas apenas um esboço e a sua alma ainda não
se encontra formada. Não oferece, consequentemente, qualquer interesse para o
Diabo. Ele já fala? Tem convulsões? Faz deslocar os objectos no quarto? Exala
mau cheiro? Ele não cheira absolutamente a nada, observou a ama. Estás a ver?
Isso é um sinal importante. Se fosse possuído pelo Diabo, teria que cheirar
mal! E, a fim de tranquilizar a ama e de pôr à prova a sua própria coragem,
Terrier levantou o cesto e colocou-o debaixo do nariz. Não me cheira a nada de
especial, declarou, após ter fungado uns instantes. Absolutamente a nada de
especial. Parece-me, no entanto, que há qualquer coisa nas fraldas que deita
cheiro, acrescentou, ao mesmo tempo que estendia o cesto à mulher para obter a
confirmação das suas palavras.
Não
é disso que falo, redarguiu a ama secamente, afastando o cesto. Não estou a
falar-lhe do que há nas fraldas. É claro que as suas fezes deitam cheiro. Mas é
ele, o bastardo, que não tem odor. Porque está de boa saúde!, ripostou Terrier.
Não tem odor porque tudo corre bem. Só as crianças doentes têm odor. Toda a
gente sabe que uma criança com bexigas cheira a bosta de cavalo; que se tiver a
escarlatina cheira a maçãs sorvadas e que, quando sofre de tuberculose, cheira
a cebolas. Esta está de boa saúde e nada mais tem. Querias que cheirasse mal?
Os teus próprios filhos cheiram mal? Não, retorquiu a ama. Os meus filhos têm o
odor que pertence aos filhos do homem.
Terrier
voltou a pousar, cuidadosamente, o cesto no chão, dado que começava a sentir os
primeiros indícios de raiva que a teimosia dessa mulher lhe inspirava. Não era
de excluir a hipótese de que a continuação desta disputa lhe exigisse o uso dos
dois braços para gesticular mais à vontade e não queria que o recém-nascido
fosse afectado. Então, cruzou as mãos atrás das costas, empinou a barriga
proeminente na direcção da ama e só depois retomou a palavra. Estás, portanto,
certa de saber a que deve cheirar o filho do homem que é também um filho do bom
Deus?... Apesar de tudo, gostaria de te recordar que a criança está baptizada, retrucou.
Sim, asseverou a ama. E se ele não tem o odor que tu, a ama Jeanne Bussie, da
Rua Saint-Denis, achas que deve ter, isso significa que é um filho do Diabo?
O
padre retirou a mão esquerda de trás das costas e brandiu-a, ameaçadoramente,
sob o nariz da ama com o indicador curvado e semelhante a um ponto de
interrogação. A ama reflectiu. Não lhe agradava que a conversa assumisse a
forma de um interrogatório teológico, em que ela ficaria, obviamente, numa situação
de inferioridade. Não foi isso que eu quis dizer, replicou ela, fazendo marcha
atrás. É o senhor que deve decidir se este caso tem ou não a ver qualquer coisa
com o Diabo, padre Terrier, pois eu não tenho competência para isso. Apenas sei
que este recém-nascido me horroriza, porque não cheira ao que devem cheirar as
crianças». In Patrick Suskind, O Perfume, 1986, Editorial Presença, Grandes
Narrativas, nº 12, 1991/1999, ISBN 978-972-231-448-0.
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