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Nada. E de onde vem o sangue que lhe corre por baixo das saias? Dos peixes. Ela
levanta-se, atira a faca para o lado e afasta-se para se lavar. Mas eis que,
contra todas as expectativas, a coisa por baixo da banca de peixe põe-se a
chorar. As pessoas acorrem, e, sob um enxame de moscas, no meio das tripas e
cabeças cortadas de peixe, descobre-se e liberta-se o recém-nascido. As
autoridades entregam-no a uma ama e a mãe é presa. E dado que ela não hesita em
confessar que certamente teria deixado morrer o fedelho como já fizera, aliás,
com os outros quatro, abrem-lhe um processo, é condenada por vários
infanticídios, e, algumas semanas mais tarde, cortam-lhe a cabeça na Praça de
Greve. Nesta altura, a criança já tinha mudado três vezes de ama. Nenhuma delas
quisera conservá-la mais do que uns dias. Afirmavam que ele era guloso demais,
mamava por dois, tirava o leite da boca dos outros recém-nascidos e o pão da
boca das amas, na medida em que uma amamentação rentável era impossível com um
único recém-nascido. O oficial da polícia encarregado deste caso, um tal La
Fosse, começava a ficar farto e já estava disposto a mandar a criança para um
centro de reagrupamento de enjeitados e órfãos, situado ao fundo da Rua Saint-Antoine,
de onde partiam diariamente bandos de crianças destinadas ao grande orfanato
estatal de Ruão. Na medida, porém, em que estes transportes eram efectuados por
carregadores de cestos de ráfia, onde, para uma maior rentabilidade, se metiam
até quatro recém-nascidos; (como, por conseguinte, a taxa de falecidos pelo
caminho era extraordinariamente elevada) como, por este motivo, os carregadores
tinham por missão preocuparem-se somente com os recém-nascidos que fossem
baptizados e estivessem munidos de um bilhete de transporte conforme as leis e
que devia ser visado à chegada a Ruão, mas como a criança Grenouille não era
baptizada nem, aliás, possuidora de um nome que pudesse constar num bilhete de
transporte conforme a lei, e como, por outro lado, era inimaginável que a
Polícia abandonasse anonimamente uma criança, colocando-a à porta do centro de
reagrupamento, o que seria a única maneira de eliminar as restantes
formalidades, numa palavra, devido a toda uma série de dificuldades
burocráticas e administrativas que a expedição do bebé aparentemente levantava,
e porque, além disso, o tempo urgia, o oficial de polícia La Fosse optou por
renunciar a pôr em prática a sua primeira decisão e deu instruções para que se
entregasse esse rapazinho a qualquer instituição religiosa, a troco de um
recibo, para que o baptizassem e tomassem decisões quanto ao seu futuro.
Conseguiram depositá-lo no Convento de Saint-Merri, na Rua Saint-Martin.
Recebeu o baptismo e o nome de Jean-Baptiste. E dado que, nesse dia, o prior se
encontrava de bom humor e dispunha ainda de fundos para as obras de caridade, a
criança não foi enviada para Ruão, mas ficou às custas do convento.
Confiaram-na, assim, a uma ama chamada Jeanne Bussie na Rua Saint-Denis, e, até
nova ordem, concederam três francos por semana a essa mulher.
Algumas
semanas mais tarde, Jeanne Bussie apresentou-se com um cesto debaixo do braço,
à porta do Convento de Saint-Merri. Aqui tem!, dirigiu-se ao padre Terrier, um
monge calvo e cheirando um pouco a vinagre, que veio abrir-lhe a porta. E
pousou o cesto na soleira da porta. O que é isto?, questionou Terrier, ao mesmo
tempo que se inclinava sobre o cesto e cheirava, supondo tratar-se de víveres. O
bastardo da infanticida da Rua aux Fers! O padre remexeu no cesto, até pôr a
descoberto o rosto do recém-nascido adormecido. Está com bom aspecto!,
observou. Com as faces rosadinhas e bem alimentado. Porque engordou à minha
custa. Porque me chupou e sugou até aos ossos. Agora, no entanto, acabou-se.
Podem continuar a alimentá-lo com leite de cabra, papas, sumo de cenoura. Este
bastardo devora tudo. O padre Terrier era um homem pacífico. Cabia-lhe a
responsabilidade da gestão dos fundos para obras de caridade do convento e da
repartição de dinheiro pelos pobres e necessitados. Em troca, apenas desejava
ouvir um obrigado e que, quanto ao resto, o deixassem em paz. Tinha
horror aos pormenores técnicos, porque os pormenores significavam sempre
dificuldades e as dificuldades significavam sempre uma perturbação da sua tranquilidade
de espírito, o que lhe era impossível suportar. Sentiu-se irritado por ter vindo
abrir a porta. Desejava que esta pessoa pegasse no cesto, voltasse a casa e
deixasse de o importunar com os problemas do recém-nascido. Endireitou-se
lentamente e aspirou o odor a leite e a lã de ovelha que a ama exalava. Era um
odor agradável. Não compreendo o que queres, retorquiu o padre. Não compreendo
onde queres chegar. Acho que era melhor que o recém-nascido ficasse ainda um
bom pedaço de tempo a ser amamentado por ti. Para ele sim, mas não para mim, redarguiu
a ama num tom áspero. Emagreci cinco quilos, e, no entanto, como por três. E
tudo a troco de três francos por semana! Ah! Agora entendo!, exclamou Terrier,
quase aliviado. Estou a ver. É de novo uma questão de dinheiro. Não!, objectou
a ama. Sim. É sempre uma questão de dinheiro, contrapôs o padre. Quando se bate
a esta porta é sempre por uma questão de dinheiro. Sonho abrir, um dia, a porta
a alguém que venha falar-me de outra coisa. Alguém, por exemplo, que me traga
uma pequena lembrança. Por exemplo, fruta ou umas nozes. Não faltam coisas
deste género, que possam trazer-se no Outono. Flores, talvez. Ou podia,
simplesmente, aparecer alguém que me dissesse num tom amável: Deus o abençoe,
padre Terrier! Um bom dia para si! Contudo, morrerei sem que isso aconteça.
Quando não é um mendigo, é um comerciante, e se não é um comerciante é um
artesão e quando não pede esmola, apresenta uma factura. Já nem sequer posso
pôr um pé na rua. Mal saio, não consigo dar três passos sem ser abordado por
indivíduos que querem dinheiro. Não é esse o meu caso!, replicou a ama». In
Patrick Suskind, O Perfume, 1986, Editorial Presença, Grandes Narrativas, nº
12, 1991/1999, ISBN 978-972-231-448-0.
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