quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

O Vermelho e o Negro. Stendhal. «Mal se entra na cidade fica-se aturdido pelo estrépito de uma máquina barulhenta e de aparência terrível. Vinte pesados martelos, tombando com estrondo que faz tremer o pavimento»

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Uma pequena cidade
«A pequena cidade de Verrières pode ser considerada uma das mais belas do Franco-Condado. As suas casas brancas com tectos pontiagudos de telhas vermelhas estendem-se pela encosta de uma colina, cujas menores sinuosidades são marcadas por maciços de vigorosos castanheiros. O Doubs corre a algumas dezenas de metros abaixo de suas fortificações, construídas outrora pelos espanhóis e hoje em ruínas. Verrières está protegida, do lado norte, por uma alta montanha, um dos contrafortes do Jura. Os cumes recortados do Verra cobrem-se de neve com os primeiros frios de Outubro. Uma torrente, que se precipita da montanha, atravessa Verrières antes de lançar-se no Doubs, e põe em movimento um grande número de serrações de madeira. É uma indústria bastante simples e que proporciona um certo bem-estar à maioria dos habitantes, mais campónios que citadinos. Contudo, não foi esta indústria que enriqueceu aquela cidadezita. À fábrica de chitas, chamadas de Mulhouse, se deve a abastança geral que, desde a queda de Napoleão, tornou possível a reconstrução das fachadas de quase todas as casas de Verrières. Mal se entra na cidade fica-se aturdido pelo estrépito de uma máquina barulhenta e de aparência terrível. Vinte pesados martelos, tombando com estrondo que faz tremer o pavimento, são erguidos por uma roda movida pela água da torrente. Cada um fabrica por dia não sei quantos milhares de pregos. São lindas e frescas raparigas quem coloca debaixo destes enormes martelos os bocaditos de ferro que são rapidamente transformados em pregos. Este trabalho, de aparência tão rude, é um dos que causam mais admiração ao viajante que vai pela primeira vez às montanhas que separam a França da Helvécia. Se, ao entrar em Verrières, perguntar a quem pertence a bela fábrica de pregos que ensurdece as pessoas que sobem a Grande Rua, responder-lhe-ão com uma entoação arrastada: ah! É do senhor presidente da Câmara.
Mesmo que o viajante se demore pouco nessa Grande Rua de Verrières, que sobe desde as margens do Doubs até ao alto da colina, tem cem probabilidades contra uma de ver surgir um homem alto com ar importante e atarefado. O seu aspecto faz tirar rapidamente todos os chapéus. Tem o cabelo grisalho e anda vestido de cinzento. É cavaleiro de várias ordens, tem testa alta, nariz aquilino e o conjunto da sua fisionomia revela certa harmonia; parece até, à primeira vista, que à dignidade de presidente de câmara provinciano reúne a aparência agradável que se pode ter com quarenta e oito a cinquenta anos. Mas depressa o viajante parisiense se sente chocado por um certo ar de contentamento de si próprio, misturado com não sei quê de acanhado e falho de imaginação. Enfim, sente-se que aquele homem se limita a fazer pagar exactamente o que lhe devem e a pagar o mais tarde possível aquilo de que é devedor. Assim é o presidente da Câmara de Verrières, senhor de Rênal. Depois de atravessar a rua com passo grave, entra na câmara e desaparece da vista do viajante. Porém, se este continua o seu passeio, depara-se-lhe, cem passos mais acima, uma casa de bela aparência e, através de um gradeamento de ferro pertencente à dita casa, uns jardins magníficos. Para além é a linha do horizonte formada pelas colinas da Borgonha e que parece feita de propósito para deliciar os olhos. Aquela vista faz esquecer ao viajante a atmosfera empestada da ganância pelo dinheiro que começa a asfixiá-lo.
Contam-lhe que aquela propriedade pertence ao senhor de Rênal. É aos ganhos que teve na sua grande fábrica de pregos que o presidente deve esta bela residência de pedra talhada, que está agora a ser terminada. Dizem que a sua família é antiga, de origem espanhola, estabelecida no país antes da conquista por Luís XIV. Desde 1815 envergonha-se de ser industrial: 1815 fê-lo presidente da Câmara de Verrières. Os muros em terraço que sustêm as diversas partes deste magnífico jardim, que, de socalco em socalco, desce até ao Doubs, são também recompensa da ciência do senhor de Rênal como comerciante de ferro. Não espereis encontrar em França aqueles pitorescos jardins que rodeiam as cidades industriais da Alemanha: Leipzig, Francfort, Nuremberga, etc. No Franco-Condado, quanto mais paredes se constroem, quanto mais se eriça a propriedade de pedras, umas sobre as outras, mais direitos se adquirem à admiração dos vizinhos. Os jardins do senhor de Rênal, cheios de muros, são também admirados por ele ter comprado a peso de ouro certas parcelas do terreno que ocupam. Por exemplo, esta serração de madeira, cuja singular posição na margem do Doubs vos impressionou ao entrar em Verrières e onde se vê o nome de Sorel escrito em letras agigantadas numa tábua por cima do telhado, ocupava, há seis anos, o espaço sobre o qual hoje se eleva a parede do quarto terraço dos jardins do senhor de Rênal. Apesar do seu orgulho, o senhor presidente teve de fazer bastantes diligências junto do velho Sorel, campónio casmurro e persistente; teve de gastar belas moedas de ouro para conseguir que ele transferisse para outro local a sua oficina. Quanto ao ribeiro público que movia a serra, o senhor de Rênal, com a influência que tinha em Paris, conseguiu que fosse desviado. Isto foi-lhe concedido depois das eleições de 182…» In Stendhal, O Vermelho e o Negro, 1828-1830, Círculo de Leitores, Cortesia de Portugália Editora, 1978.

Cortesia de CLeitores/JDACT