quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Os Caçadores de Livros. Raphael Jerusalmy. «No extremo mais fundo da sala, de costas, um outro homem sorri. Empunhando já o pichel e o copo. Um vinho escuro, cor de tinta, de aroma acre, brota do bico de faiança»

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«(…) Chartier poisa de novo o copo e despede-se bruscamente. A sua túnica flutua por um momento na moldura da porta antes de ser aspirada pela penumbra. Villon julga ter sonhado. Com que então, irá escapar à forca? Poderá fiar-se na palavra de um intriguista de sacristia? Têm de se manter em guarda. Mas, por um repasto tão copioso, vale bem a pena pactuar com o diabo em pessoa. Um resto de guisado de carne nada no fundo da terrina. Já morno. As velas apagam-se de manso. François aproveita para surripiar a faca do pão e duas colheres de prata, que esconde nos seus andrajos.Continuando especado no limiar, o carcereiro boceja de fadiga. Lá fora, uma névoa preguiçosa alça-se acima das muralhas. O friso das ameias desenha-se com nitidez, livre do seu véu de geada. Os primeiros pios das corujas fazem-se ouvir sobre o telhado da torre de menagem. Ao longe, um campanário toca as matinas. François Villon não escreveu ainda a sua última balada.
A porta da taberna abre-se brutalmente, metida dentro pela borrasca. As rajadas de rocio e de granizo caem sobre as lajes, salpicando a serradura e a palha. Os cães rosnam, os bebedores mugem, os gatos correm para debaixo das mesas. As sombras vacilam no clarão vermelho da lareira subitamente ateada. Proferem-se ameaças, pragas. Emoldurado pelo lintel ressumante de chuva, perfila-se a figura de um homem, com os contornos grosseiramente recortados na brancura do granizo. Mantém-se por um momento imóvel, ignorando o tumulto. Flutua-lhe à volta dos ombros uma capa de veludo negro, como que num bater de asas. Dois traços pálidos laceram este espectro importuno: um sorriso macilento e, mais abaixo, o reflexo lácteo de uma lâmina de punhal. No extremo mais fundo da sala, de costas, um outro homem sorri. Empunhando já o pichel e o copo. Um vinho escuro, cor de tinta, de aroma acre, brota do bico de faiança. Boa noite, mestre Colin. Colin Cayeux instala-se diante do seu amigo. Têm a opalanda a escorrer água, glacial. Apodera-se do copo, esvazia-o de um trago e lança a seguir os ombros para trás, para tomar recuo. Villon deixa-se examinar à vontade. Depois de todos estes meses de solidão, reconforta-o ver-se assim remirado pelo seu companheiro. Tornando a poisar lentamente o copo em cima da mesa, François saboreia em silêncio este momento de amizade. O seu olhar percorre os veios da madeira, subindo os rios que desenham no mapa de um país desconhecido. Distingue nele as estradas onde Colin e ele montaram as suas emboscadas, as florestas onde se esconderam quando os guardas os perseguiam, as aldeias com as baiucas escuras onde Marion, Margot, Cunégonde os aguardavam. Cada mancha de gordura é uma ilha, cada gota de vinho um lago orlando uma mansão. Ao longo de todas as suas andanças, acompanharam Villon mesas de taberna como esta.
Consolaram-no, inspiraram-no, recolhendo as suas alegrias e as suas dores, escutando as suas queixas, aceitando sem protestar as incisões que ele gostava de nelas fazer a fio de faca. Os riscos que as fendem falam uma língua misteriosa. Sopram palavras, frases ao ouvido. Basta depois uma música, algumas rimas, para lhes revelarem o segredo. Sem falar já da sua textura robusta que as torna excelentes secretárias. Colin olha o seu amigo sem dizer palavra. Está habituado a estes silêncios, estes momentos em que François o deixa, perdido num estranho conciliábulo com os anjos. Ou com o seu próprio demónio. Não lho leva a mal. François tem a alma vagabunda. Lá fora, a tempestade acalmou-se. Retoma-se o trabalho, em plena noite. Colin ouve os golpes surdos dos maços, o ranger áspero das roldanas, os brados abafados dos contramestres, o choro dos burros alijados da carga, os encarregados que vociferam ordens em veneziano, em baixo-alemão, em árabe. A Feira de Lyon será inaugurada ao amanhecer, custe o que custar. Dás-me inquietação, François. Pensei que fosses deliciar a galeria com uma balada a preceito. os estudantes estão surpreendidos com o teu silêncio. Contavam com uns bons versos chocados no fundo das masmorras, algumas coplas rebeldes. E tu não tuges nem muges... Os estudantes já têm novas canções. Os livreiros riscaram-me dos seus inventários». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.

Cortesia de CAutor/JDACT