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Chartier poisa de novo o copo e despede-se bruscamente. A sua túnica flutua por
um momento na moldura da porta antes de ser aspirada pela penumbra. Villon julga
ter sonhado. Com que então, irá escapar à forca? Poderá fiar-se na palavra de um
intriguista de sacristia? Têm de se manter em guarda. Mas, por um repasto tão copioso,
vale bem a pena pactuar com o diabo em pessoa. Um resto de guisado de carne nada
no fundo da terrina. Já morno. As velas apagam-se de manso. François aproveita
para surripiar a faca do pão e duas colheres de prata, que esconde nos seus andrajos.Continuando
especado no limiar, o carcereiro boceja de fadiga. Lá fora, uma névoa
preguiçosa alça-se acima das muralhas. O friso das ameias desenha-se com
nitidez, livre do seu véu de geada. Os primeiros pios das corujas fazem-se ouvir
sobre o telhado da torre de menagem. Ao longe, um campanário toca as matinas. François
Villon não escreveu ainda a sua última balada.
A porta
da taberna abre-se brutalmente, metida dentro pela borrasca. As rajadas de rocio
e de granizo caem sobre as lajes, salpicando a serradura e a palha. Os cães rosnam,
os bebedores mugem, os gatos correm para debaixo das mesas. As sombras vacilam no
clarão vermelho da lareira subitamente ateada. Proferem-se ameaças, pragas. Emoldurado
pelo lintel ressumante de chuva, perfila-se a figura de um homem, com os contornos
grosseiramente recortados na brancura do granizo. Mantém-se por um momento
imóvel, ignorando o tumulto. Flutua-lhe à volta dos ombros uma capa de veludo negro,
como que num bater de asas. Dois traços pálidos laceram este espectro importuno:
um sorriso macilento e, mais abaixo, o reflexo lácteo de uma lâmina de punhal. No
extremo mais fundo da sala, de costas, um outro homem sorri. Empunhando já o pichel
e o copo. Um vinho escuro, cor de tinta, de aroma acre, brota do bico de faiança.
Boa noite, mestre Colin. Colin Cayeux instala-se diante do seu amigo. Têm a opalanda
a escorrer água, glacial. Apodera-se do copo, esvazia-o de um trago e lança a seguir
os ombros para trás, para tomar recuo. Villon deixa-se examinar à vontade. Depois
de todos estes meses de solidão, reconforta-o ver-se assim remirado pelo seu companheiro.
Tornando a poisar lentamente o copo em cima da mesa, François saboreia em silêncio
este momento de amizade. O seu olhar percorre os veios da madeira, subindo os rios
que desenham no mapa de um país desconhecido. Distingue nele as estradas onde Colin
e ele montaram as suas emboscadas, as florestas onde se esconderam quando os guardas
os perseguiam, as aldeias com as baiucas escuras onde Marion, Margot, Cunégonde
os aguardavam. Cada mancha de gordura é uma ilha, cada gota de vinho um lago orlando
uma mansão. Ao longo de todas as suas andanças, acompanharam Villon mesas de
taberna como esta.
Consolaram-no,
inspiraram-no, recolhendo as suas alegrias e as suas dores, escutando as suas queixas,
aceitando sem protestar as incisões que ele gostava de nelas fazer a fio de
faca. Os riscos que as fendem falam uma língua misteriosa. Sopram palavras,
frases ao ouvido. Basta depois uma música, algumas rimas, para lhes revelarem o
segredo. Sem falar já da sua textura robusta que as torna excelentes secretárias.
Colin olha o seu amigo sem dizer palavra. Está habituado a estes silêncios, estes
momentos em que François o deixa, perdido num estranho conciliábulo com os anjos.
Ou com o seu próprio demónio. Não lho leva a mal. François tem a alma
vagabunda. Lá fora, a tempestade acalmou-se. Retoma-se o trabalho, em plena noite.
Colin ouve os golpes surdos dos maços, o ranger áspero das roldanas, os brados abafados
dos contramestres, o choro dos burros alijados da carga, os encarregados que vociferam
ordens em veneziano, em baixo-alemão, em árabe. A Feira de Lyon será inaugurada
ao amanhecer, custe o que custar. Dás-me inquietação, François. Pensei que fosses
deliciar a galeria com uma balada a preceito. os estudantes estão surpreendidos
com o teu silêncio. Contavam com uns bons versos chocados no fundo das masmorras,
algumas coplas rebeldes. E tu não tuges nem muges... Os estudantes já têm novas
canções. Os livreiros riscaram-me dos seus inventários». In Raphael Jerusalmy, Os
Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor,
Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.
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