sábado, 28 de janeiro de 2017

Recensão. Artur Rocha. A Muralha de Dinis I e a Cidade de Lisboa. Fragmentos Arqueológicos e a Evolução Histórica. Paulo Almeida Fernandes. « Na verdade, a acção desenvolvida pelo Museu do Dinheiro não é a única iniciativa dedicada a desvendar e a preservar trechos do sistema muralhado medieval da cidade»

Cortesia de wikipedia

«(…) Outras perguntas situam-se em âmbitos de maior exigência, que apenas a ampliação da área intervencionada arqueologicamente poderá vir a responder. Qual a relação da muralha Dionisina com a Cerca Fernandina, construída escassos oitenta anos depois daquela? A crer no traçado proposto por Vieira Silva para esta última, a opção dos construtores do século XIV foi a de inviabilizar a edificação do tempo de Dinis I, que já aparece mencionada como muro velho num documento da chancelaria régia, datado de 1424. Este dado leva-me a admitir que a empreitada fernandina terá registado diferentes escolhas ainda por explicar cabalmente: na zona ocidental da cidade, terá menosprezado a muralha Dionisina mas, no extremo oposto, no lado oriental, aproveitou uma torre anterior ao tempo de Dinis I para se ligar à Cerca Velha, em concreto a torre de S. Pedro, cuja primeira menção data de 1263. Por outro lado, qual a relação que se poderá estabelecer com o troço do muro Dionisino identificado em 1939? Faria este ainda parte do sector de muralha promovido pelo rei, ou estaria já na área que a Câmara de Lisboa se comprometeu a construir pelo contrato de 1294, mas cuja empreitada não está provada? E teria o troço construído pela autarquia as mesmas características construtivas que o patrocinado pelo monarca?
Estas e muitas outras perguntas não podem ser dirigidas apenas à equipa de arqueologia do Museu do Dinheiro do Banco de Portugal. É necessário que outros agentes científicos possam prestar o seu contributo para que as perspectivas agora inauguradas de interpretação da muralha do reinado de Dinis I possam ter continuidade em relação à totalidade do sistema defensivo medieval de Lisboa. Na verdade, a acção desenvolvida pelo Museu do Dinheiro não é a única iniciativa dedicada a desvendar e a preservar trechos do sistema muralhado medieval da cidade. Dois outros projectos em curso merecem ser aqui referenciados, pela grande importância dos resultados até agora alcançados.
O primeiro diz respeito ao trabalho de Manuela Leitão, cuja investigação desenvolvida ao longo de vários anos sobre a Cerca Velha culminou na constituição de um circuito pedonal de cerca de 1,5 Km, sinalizado com 16 pontos de informação, e que permite a realização de uma visita orientada e informada de aproximadamente uma hora em torno daquele perímetro muralhado. Seguindo os vários painéis informativos, estrategicamente colocados em locais relevantes da muralha, que situam o visitante no circuito e fornecem-lhe informação contextual adicional, a visita pode ser complementada com um mapa que está disponível em alguns pontos turísticos, assim dispensando a orientação por parte de guias.
O itinerário da Cerca Velha foi inaugurado em Setembro de 2014 como produto turístico, mas ele representa a face mais visível de um programa de trabalhos de maior ambição. O PIEVCVL, Projecto Integrado de Estudo e Valorização da Cerca Velha de Lisboa, cujas origens recuam a 1998, promoveu a realização de 11 escavações, o levantamento criterioso de sete sectores de paramentos, duas acções de conservação e restauro e um plano coerente de qualificação urbanística da envolvente à cerca. Realizou-se mesmo um estudo de arqueologia da arquitectura, num dos trechos mais bem preservados (Rua da Judiaria e Postigo de São Pedro) e um projecto de investigação específico destinado a caracterizar as argamassas, passo interdisciplinar decisivo para compreender técnicas construtivas e a produção de ligantes e revestimentos a partir dos recursos naturais existentes em Lisboa.
Estes números impressionam pela abrangência de acções e novos dados serão revelados em breve (uma vez que continuam as sondagens, como a que a Marina Carvalhinhos efectuou na Rua Norberto Araújo, em 2015), mas a Cerca Velha, como qualquer marca arquitectónica de uma cidade em contínua transformação, é um organismo vivo que guarda partes da história de Lisboa por decifrar. A muralha não foi sempre uma fronteira; ela foi ponto de apoio e de partida para outras construções, foi rasgada e rompida para permitir acessos antes indesejados, foi alteada e suprimida ao sabor de vagas construtivas e gerações de vontades. A densa história que o projecto de estudo e valorização tem revelado, complementa-se com a documentação medieval, moderna e contemporânea e um crescente espólio iconográfico e fotográfico, ingredientes que adivinham a relevância e o sucesso de um centro interpretativo sobre este monumento (ambição antiga dos gestores do PIEVCVL), mas também de um livro sobre a Cerca Velha de Lisboa, não já um roteiro ou um circuito turístico-cultural, mas sim um estudo monográfico que sedimente o conhecimento adquirido até hoje». In Paulo Almeida Fernandes, Recensão, A Muralha de Dinis I e a Cidade de Lisboa. Fragmentos Arqueológicos e a Evolução Histórica, Museu do Dinheiro / Banco de Portugal, 2015, Universidade de Coimbra, IEM, Revista Medievalista, Nº 20, 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de IEM/FCSH/NOVA/FCT/JDACT