Cortesia
de wikipedia e jdact
«O
imenso ponteiro negro continua parado, mas está prestes a fazer seu gesto,
aquele de um por minuto; esse solavanco jovial porá todo um mundo em movimento.
O quadrante se voltará vagarosamente para outro lado, cheio de desalento,
desdém e tédio, assim como as colunas de ferro começarão, uma a uma, a passar
por ali, levando a abóbada da estação como afáveis telamões; a plataforma
começará a se movimentar, levando em jornada desconhecida as pontas de cigarro,
passagens sem valor, salpicos de luz solar e de cuspe; um carrinho de bagagens
passará por ali, as rodas imóveis; será acompanhado por banca de jornais
encoberta por sedutoras capas de revistas, fotografias de belezas despidas e
aperoladas e pessoas, pessoas e mais pessoas na plataforma que se move, elas
mesmas movimentando as bebedeiras, mas ainda assim paradas e em pé, seguindo à
frente e ao mesmo tempo recuando, como em sonho agoniante, cheio de esforço e
náusea incríveis, uma fraqueza algodoada nas panturrilhas nos acometerá,
fazendo-nos quase cair de borco. Havia mais mulheres do que homens, como sempre
acontece nas despedidas. A irmã de Franz, com a palidez das horas matinais nas
faces magras e um odor desagradável, de estômago vazio, coberta por capa
enxadrezada que com certeza ninguém veria numa moça de cidade; e a mãe dele,
mulher pequenina e redonda, toda em castanho como um monge pequenino e
compacto. É notar que os lenços começam a tremular, drapejar, acenar. E sucedeu
não apenas que eles se afastassem, deslizantes, aqueles dois sorrisos
conhecidos; não apenas a estação partiu, levando consigo a banca de jornais, o
carrinho de bagagens e o vendedor de sanduíches e frutas, com aqueles morangos
vermelhos e luzidios, tão bonitos, gordos, bem criados, claramente implorando
que os mordessem, todos os aquénios proclamando a sua afinidade com as papilas
de nossa língua, mas, ai, sumidos agora; não apenas tudo isso ficou para trás,
todo o velho burgo na sua bruma matutina e outonal rósea também se movia: o
grande Herzog de pedras na praça, a catedral escura, os letreiros das lojas,
chapelaria, o peixe, a bacia de cobre de um barbeiro. Não havia agora como
fazer parar o mundo. As casas desfilam em grande estilo, as cortinas drapejam
nas janelas abertas de sua casa, os soalhos estalam um pouco, as paredes estalam
também, sua mãe e sua irmã estão tomando o café matinal a goles rápidos, os
móveis estremecem com os solavancos mais rápidos, e com rapidez cada vez maior,
de modo sempre mais misterioso, viajam as casas, catedral, praça, as ruas
secundárias. E embora a essa altura os campos cultivados desde muito se
houvessem estendido na sua colcha de retalhos, vistos pela janela da carruagem,
Franz continuava sentindo nos ossos o distanciamento da cidadezinha onde vivera
por vinte anos. Além de Franz, o compartimento de terceira e bancos de madeira
continha duas velhas senhoras em vestido de veludinho; uma mulher gorducha e
inevitavelmente corada, com a inevitável cesta de ovos no regaço; e uma jovem
loura em short escuro, rija e corada, parecidíssima à mochila de Franz, que
estava muito estofada e parecia ter sido talhada em pedra amarela: ele a
sacudira com energia, colocando-a na prateleira de cima. O assento à porta e em
frente a Franz era ocupado por revista com fotografia de uma jovem
arrebatadora; e à janela no corredor, de costas para o compartimento,
encontrava-se um homem espadaúdo, de sobretudo negro. O comboio seguia agora
com rapidez. Franz, de repente, levou a mão à ilharga, perpassado pelo
pensamento de que perdera a carteira de dinheiro, cujo conteúdo era de tanto
valor: o pequeno e firme bilhete de passagem, o cartão de visitas de um
desconhecido, contendo endereço precioso, e todo um mês inviolado de vida
humana, em Reichsmarks. A carteira estava ali, logo comprovou, firme e cálida. As
velhas senhoras começaram a se mexer e farfalhar, desembrulhando sanduíches. O
homem no corredor voltou-se e, com leve inclinação à frente, recuando meio
passo, e depois vencendo a inclinação do chão, entrou no compartimento. A maior
parte do nariz desaparecera, ou nunca crescera. Ao que restava de sua ponte a
pele pálida e apergaminhada se prendia com justeza nauseante; as narinas haviam
perdido toda a noção de decência e defrontavam o espectador perturbado como
dois buracos repentinos, negros e assimétricos; as faces e a testa exibiam uma
variedade geográfica de tonalidades, amarelado, róseo e muito lustrosas. De
quem teria herdado tal máscara? E se não fosse isto, que enfermidade, que
explosão, que ácido, o desfigurara? Não tinha quase lábios; a ausência de
pestanas conferia a seus olhos azuis uma expressão de sobressalto. E, no
entanto, vestia-se com elegância, estava bem cuidado e tinha boa compleição.
Usava casaco trespassado sob o sobretudo grosso, seus cabelos eram lisos como
os de uma peruca. Puxou os joelhos das calças para cima ao sentar-se com
movimento calmo, as mãos em luvas cinzentas abriram a revista que ele deixara
no banco.
O
estremecimento que passara entre as omoplatas de Franz centralizava-se agora em
sensação estranha na boca. A língua lhe parecia repulsivamente viva; o palato
asquerosamente húmido. A recordação abriu sua galeria de obras de cera e ele
sabia, sabia que ali, algures a um canto, uma câmara de horrores o esperava.
Lembrou-se do cachorro que vomitara na entrada do açougue. Lembrou-se de uma
criança, simples pequerrucho, que, dobrando-se com a dificuldade de sua idade,
havia laboriosamente apanhado e levado aos lábios uma coisa imunda que se
parecia a uma chupeta. Lembrou-se do velho com tosse no bonde, que lançara um
grumo de muco na mão do condutor. Eram imagens que Franz geralmente mantinha
longe de si, mas que não paravam de enxamear de volta, contra o pano de fundo
de sua vida, recebendo com espasmo histérico qualquer impressão nova que se
lhes assemelhasse. Após um choque desse tipo naqueles dias ainda recentes,
lançava-se ao leito e procurava combater o acesso de náusea. Suas recordações
da escola pareciam estar-se sempre desviando de contatos possíveis e
impossíveis com a pele escorregadia, suja e sardenta de algum colega que
instava para participar em algum brinquedo ou aflito por transmitir-lhe algum
segredo escarlate. O homem folheava a revista, e a combinação de seu semblante
e a capa sedutora mostrava-se insuportavelmente grotesca. A mulher corada como
gema de ovo sentava-se ao lado do monstro e seu ombro adormecido tocava nele. A
mochila da jovem esfregava-se na mala negra, luzidia e coberta de etiquetas,
pertencente a ele». In Vladimir Nabokov, Rei. Dama. Valete, 1928, Relógio D’Água, 2012,
ISBN 978-989-641-314-9.
Cortesia de Relógio D’Água/JDACT