Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
O que era pior, as velhas ignoravam o vizinho horrível e mordiam os sanduíches,
chupando partes penugentas de laranja, enrolando as cascas em pedaços de papel
e enfiando-as com graça por baixo do assento. Mas quando o homem baixou a
revista e, sem descalçar as luvas, começou a comer um pão com queijo, lançando
olhares provocadores em volta, Franz não aguentou mais. Levantou-se depressa,
como um mártir ergueu o rosto pálido, soltou e puxou para baixo sua mala
humilde, apanhou a capa de chuva e chapéu e, batendo desastradamente com a mala
na maçaneta da porta, refugiou-se no corredor. Aquela carruagem fora ligada ao comboio
expresso em estação recente, e o ar ali dentro continuava fresco. Teve de
imediato uma sensação de alívio, mas a tontura não passara de todo. Uma muralha
de bétulas passava em desfile pela janela, em sequência salpicada de sol e
sombras. Começou experimentalmente a percorrer o corredor, agarrando-se em
maçanetas e nas coisas e olhando para o interior dos compartimentos. Só um
tinha lugar vago; hesitou e prosseguiu, desvencilhando-se da imagem de duas
crianças com as faces cheias de massa e gordura e mãos enegrecidas de poeira,
os ombros erguidos na expectativa de uma pancada que a mãe lhes desferia na
nuca, enquanto não paravam de deslizar e sair do assento para brincarem,
naquele chão indizível, aos pés dos passageiros. Franz chegou ao extremo do
vagão e estacou, acometido por pensamento extraordinário. Tal pensamento era
tão doce, audacioso e animador que teve de tirar os óculos e limpá-los. Não,
não posso, não há jeito, disse baixinho mas já compreendendo que não venceria a
tentação. E depois, examinando o laço da gravata com o polegar e indicador,
atravessou em irrupção de ruído as plataformas agitantes entre os vagões e, com
estranha sensação no estômago, passou para o vagão seguinte. Tratava-se de um
vagão schnellzug de segunda classe e para Franz a segunda classe era
algo muitíssimo atraente, um tanto pecaminoso até, cheirando a extravagância
apimentada como um gole de licor branco e grosso, ou aquela toranja imensa que
se parecia a um creme amarelo e que certa vez comprara, no caminho para a
escola. Não seria capaz de sonhar sobre a primeira classe, em absoluto, isso
era para diplomatas, generais e atrizes, criaturas quase fora deste mundo! A
segunda, no entanto..., a segunda... Se conseguisse ter coragem para tanto.
Diziam que seu finado pai (tabelião andrajoso) em certa ocasião, fazia muito
tempo, antes da guerra, viajara de segunda classe. Franz, todavia, não
conseguia decidir-se. Estacou no início do corredor, ao lado do letreiro que
relacionava os pertences do vagão e este já não era uma floresta-cerca a olhar,
porém imensos prados deslizando majestosamente por ali e, à distância, em
paralelo aos trilhos, seguia uma estrada de rodagem, e nela um automóvel
liliputiano em velocidade faiscante. O chefe do trem, que fazia a ronda,
tirou-o da dificuldade. Franz pagou o suplemento que promovia sua passagem a
escalão superior. Um túnel curto ensurdeceu-o com sua escuridão reverberante e
logo a luz voltou, mas o chefe de trem desaparecera. O compartimento em que
Franz entrou, com mesura silenciosa e sem resposta, era ocupado por apenas duas
pessoas, uma bela senhora de olhar brilhante e um homem de meia-idade, de
bigode escuro e aparado. Franz pendurou a capa de chuva e sentou-se com
cautela. O assento era muito macio, e havia uma projecção semicircular muito cómoda,
na altura das têmporas, separando um assento do outro; as fotografias nas
paredes mostravam-se tão românticas, um rebanho de ovelhas, a cruz sobre uma
rocha, uma cascata. Devagar ele estendeu as pernas compridas, sem pressa tirou
do bolso o jornal dobrado que ali guardara. Mas não pôde ler. Empolgado por
tanto luxo limitou-se a segurar o jornal aberto diante de si e por trás dele
examinou os companheiros de viagem. Oh, era gente encantadora. A dama usava
roupa negra e minúsculo chapéu também negro, com pequenina gaivota de
brilhantes. Seu semblante era sério, os olhos frios, leve penugem, que era o
sinal de paixão, brilhava acima do lábio superior, um vislumbre de sol
destacava-lhe a tessitura cremosa do pescoço com duas linhas delicadas, como se
traçado com uma unha, um acima do outro: aquilo também era o presságio de todas
as espécies de maravilhas, ao que informara um de seus colegas de escola,
perito dos mais precoces. O homem devia ser estrangeiro, a avaliar pelo
colarinho macio e roupa enxadrezada. Franz, no entanto, se enganara. Tenho sede,
disse o homem, com sotaque berlinense. Uma pena que não haja frutas. Aqueles
morangos estavam declaradamente aflitos para serem provados. A culpa é sua, retrucou a dama, com desagrado
na voz e aduzindo pouco depois: ainda não me conformo..., foi uma coisa das
mais tolas, aquela. Dreyer ergueu os olhos para o céu improvisado e não
respondeu. A culpa é sua, repetiu ela e puxou de modo automático a saia
pregueada, observando automaticamente que o rapaz desajeitado e de óculos que
aparecera ao canto da porta parecia fascinado por suas pernas sedosas. De
qualquer modo, prosseguiu, não vale a pena discutir. Dreyer sabia que seu
silêncio irritava Martha, e irritava de modo indizível. Havia um brilho maroto
em seus olhos, e as dobras macias em volta dos lábios ondulavam, porque fazia
uma bala de hortelã rolar dentro da boca. O incidente que irritara a esposa, na
verdade, fora dos mais tolos. Haviam passado o mês de Agosto e metade de Setembro
no Tirol e agora, de volta para casa, ele parara por alguns dias para fazer
negócios naquela cidadezinha singular, e ali visitara sua prima Lina, com quem
dançara quando jovem, cerca de vinte e cinco anos atrás. A esposa se recusara
terminantemente a acompanhá-lo. Lina, criatura agora roliça e de dentes
postiços, mas tão loquaz e afável quanto antes, dissera que os anos o haviam
marcado, mas que podia ter sido pior; servira-lhe café excelente, falara-lhe de
seus filhos, deplorara não estarem em casa, indagara sobre Martha (a quem não
conhecia) e os negócios dele (sobre os quais achava-se bem informada); e
depois, após uma pausa caridosa, perguntara se ele podia dar-lhe alguns
conselhos...» In Vladimir Nabokov, Rei. Dama. Valete, 1928, Relógio D’Água, 2012,
ISBN 978-989-641-314-9.
Cortesia de Relógio
D’Água/JDACT