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«Mehuru
acordou ao nascer do dia sentindo o ar fresco no seu corpo estendido. Abriu os olhos
na penumbra e inspirou profundamente, como se a leve brisa pudesse trazer consigo
um aroma desconhecido. Na sua mente ainda permaneciam resquícios do sonho que tivera,
uma visão perturbadora de um navio a levantar âncora entre sombras e a navegar lentamente
através de um desfiladeiro profundo e rochoso. Levantou-se da tarimba onde dormia,
embrulhou-se num lençol e foi calmamente até à porta. A cidade de Oyo estava em
silêncio. Olhou para a rua; não se via qualquer luz. Só nas densas paredes do palácio
conseguia ver uma luz a deslocar-se à medida que um criado percorria as diversas
divisões e o brilho da tocha que empunhava ia iluminando cada uma das janelas por
onde passava. Não havia nada a temer, não havia nada a incomodá-lo, mas, apesar
disso, estava alerta e à escuta, como se o piar das corujas que andavam à caça ou
os pequenos guinchos dos morcegos pendurados à volta das torres de pedra do
palácio pudessem estar a avisá-lo de qualquer coisa. Sentiu um ligeiro arrepio e
afastou-se da porta. O sonho tinha sido muito nítido, apenas a imagem de uma
corda a cair de um cais de pedra e a serpentear pela água até junto à proa de um
navio e a subir pela parte lateral como se estivessem a puxá-la e, depois, o navio
a afastar-se de terra, silenciosamente. Numa imagem assim não devia haver nada a
temer, mas o sonho fora obscurecido por uma sensação de ameaça, da qual Mehuru ainda
não conseguira libertar-se. Em voz baixa, chamou o escravo Siko, que dormia aos
pés da sua cama. Faz chá, ordenou-lhe secamente quando o rapaz apareceu, ainda a
esfregar os olhos.
Estamos
a meio da noite, protestou o rapaz, mas calou-se ao ver a expressão de Mehuru. Assim
farei, meu senhor. Mehuru esperou junto à porta que o rapaz lhe depositasse na mão
a pequena taça de bronze com chá de hortelã. O aroma intenso que dele emanava reconfortou-o.
No sonho havia um cheiro terrível, um cheiro a morte e doença, como se o navio que
partira por entre a escuridão, sem deixar rasto na água gordurosa,
transportasse carne putrefacta. Aquele sonho devia ter um significado qualquer.
Mehuru fora preparado para ser obalawa, sacerdote, e transformara-se num
dos mais importantes do país. Devia saber decifrar os seus próprios sonhos. O céu
clareava sobre os telhados da cidade, brilhando como uma pérola envolta em
nuvens finas como musselina. Enquanto as observava, foram-se dissipando, e a cor
do céu acentuou-se lentamente num tom acinzentado, passando depois a um azul-pálido
enublado. Na linha do horizonte, a oriente, o sol despontou, como um disco
branco a arder. Mehuru sacudiu a cabeça para se libertar do sonho. Tinha pela frente
um dia muito ocupado: uma reunião no palácio e a oportunidade de mostrar que
era um homem decidido e ambicioso. Esqueceu o sonho. Se voltasse a lembrar-se dele,
tentaria então interpretá-lo. O dia aproximava-se em tons brilhantes de creme e
branco, promissor. Mehuru não queria que um dia assim fosse ensombrado pela
silhueta obscura de um navio visto em sonhos. Voltou para dentro e mandou Siko
aquecer água para se lavar e preparar as suas melhores vestes. No porto de Bristol,
onde a água salgada se encontra com a água doce no canal de Bristol, o navio
negreiro Daisy dispensou o piloto que o guiara pela estreita e traiçoeira
garganta do Avon e separou-se das barcaças que o haviam rebocado em segurança até
ao mar. Içou as velas quando o sol nasceu e se levantou um vento ligeiro vindo de
oeste. O capitão Lisle abriu os mapas à sua frente e traçou a rota até à costa de
África, no ponto onde ficava a Guiné. O criado já lhe preparara uma camisa lavada
e água para se lavar. Tornou a deitá-la jarro de porcelana, que segurou cuidadosamente
com as mãos calejadas e sujas.
Josiah
espalhou um pouco de areia sobre a carta com a mão firme e soprou-a com
cuidado. Levantou-se da cadeira, aproximou-se da janela alta e olhou para
baixo, vendo os desembarcadouros e a água escura da doca de Redclift. A maré estava
a subir e os navios balançavam suavemente junto ao paredão; ouvia-se um som
constante vindo do cordame que ressoava sob o vento suave, mas gélido. Havia um
monte de lixo e de fardos abandonados no molhe vazio da Coles e algumas cordas de
amarração ainda enroladas no cabeço. Josiah tinha visto o seu navio Daisy
desfraldar as velas na maré da manhã. Aquela hora já devia ter chegado ao alto-mar,
numa viagem que levava a sua esperança. Não podia fazer nada a não ser esperar.
Esperar por notícias do Daisy e pela chegada do seu segundo navio, o Lily,
que atravessava lentamente os mares, vindo das Índias Ocidentais com um carregamento
de açúcar e rum. O seu terceiro navio, o Rose, devia estar a descarregar
em África. Josiah não era, por natureza, um homem paciente, mas fazer comércio apenas
com três pequenos navios em seu nome ensinara-o a ser firme nos propósitos e a ter
uma paciência infinita. Cada uma das viagens demorava mais de um ano e, quando um
navio partia da doca, podia não voltar a ter notícias dele até regressar. Não podia
fazer nada para apressar a viagem do Daisy nem para ficar mais rico. Depois
de ter aprovisionado o Daisy e de o ter visto içar as velas, não havia nada a fazer
a não ser esperar e olhar para o lixo espalhado na água oleosa do porto. O
cheiro peculiar dos seus navios, o do suor causado pelo medo e pelas doenças,
ao qual se sobrepunha o intenso odor a álcool e a açúcar, pairava sobre a doca como
uma neblina infectada.
Até na
roupa de Josiah esse cheiro se sentia ao de leve, impregnando-lhe igualmente a peruca
e a pele. Não se apercebera na entrevista de sexta-feira com miss Scott de que
ela levara várias vezes o lenço à cara para conseguir suportar o cheiro acre do
entreposto que dominava por completo os pequenos aposentos por cima do armazém.
Aquele odor tornava-se mais forte quando havia um navio na doca. Olhou para a
carta que tinha na mão. Estava escrita com a mesma honestidade e simplicidade com
que um homem de negócios escreve quando quer que as suas ordens sejam
compreendidas e obedecidas. Nunca tinha aprendido o palavreado aristocrata. Olhou
para a carta com um ar crítico. Se ela a mostrasse a lord Scott, talvez ele a
lesse com desdém pelo seu tom directo e claro. Estaria demasiado humilde, ou seria
a referência à casa de Queens Square, que afinal ainda não tinha comprado, demasiado
pretensiosa?» In Philippa Gregory, Um Comércio Respeitável, 1995, Porto Editora,
2013, ISBN 978-972-004-430-3.
Cortesia de
PEditora/JDACT