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«Maria
Adelaide completara dezasseis anos quando lhe colhi as primícias, e, à
semelhança do que sucede com frequência na terra onde habitávamos, os pais, que
eram pobres, consentiam em que mantivéssemos relações coram populo, indo
eu todas as noites dormir na sua companhia. Podia tê-la tirado logo à família,
montando-lhe casa à parte, mas nem eu nem os pais sentíamos grande desejo de
efectuar a separação: eles porque tendo-a em sua companha melhor lhe exploravam
os proventos da mancebia; eu para não dar mais solidez à ligação, esperando
vagamente que fosse passageira...
Reminiscências
do começo: a minha rapariga estava triste; a mãe tinha-lhe batido, desonrando-a
de tudo, chamando-lhe os nomes mais feios que se podem chamar a uma mulher. E
as suas lamentações não tinham fim: ela é que sustentava a família, ela é que
pagava as casas e dava constantemente presentes a todos, em especial às irmãs,
que também lhe não tinham respeito nenhum, e a mãe ainda em cima lhe batia. E
isso é que mais a magoava. Estou consigo há tanto tempo (alguns meses apenas) e
eu bem vejo como me trata: olha lá Santo Antoninho que não sei onde te ponha, e
a minha mãe bateu-me só porque eu puxei as orelhas à Joaquina (a terceira
irmã), que é uma grandíssima atrevida e me arranca os cabelos aos punhados. Se
não fosse por atender ao meu pai, que acode por mim, deixava-os a todos. Que se
eu estivesse séria, e não brincasse e não risse, já elas todas me tinham
respeito. Também hoje, só por teima, não quis deixar de comer e fui cear muito
séria. Mas amanhã já eu começo a rir e a brincar com todos e logo me perdem o
respeito. Ai!, eu gosto tanto, tanto, da minha Glória (a irmã mais nova);
parece mesmo que é minha filha, tão linda, tão limpinha! Eu quero ter um
mocinho; faça-me um mocinho, não é verdade? Ah!, se eu tivesse um mocinho,
ontem, quando a minha mãe me bateu, vestia-o, que havia de parecer um menino
rico, e punha-me na rua sozinha, com ele nos braços. Os dias são tão grandes e
eu ando tão aborrecida! E faço gosto em comer, em rir. Agora a minha paixão são
chicharros alimados. Ontem havia chicharros alimados para a ceia; também por
isso é que eu fui comer. Mas estou muito triste. Agora já não é tanto, que o
meu amiguinho, com as suas festas, quase que me pôs alegre... Mas uma coisa que
eu não quero é que a minha mãe me bata; e então pancadas nos braços, murros nas
costas. Parece uma fera direito a mim. Mas espera que algum dia ponho-me
direito a ela que nem um leão. Custa muito fazer o que eu tenho feito pela
minha família e ainda em cima receber maus tratos e insultos. E diz que a casa
é dela, porque ela a arrendou e ela é que vai levar os aluguéis à dona. Já viu
isto? E tudo pago com o meu dinheiro; meu, não; seu, porque seu é tudo o que eu
tenho. Eu sempre queria ver com os ganhos de meu pai, que neste mês foram um
cruzado, ou pelo menos foi tudo quanto ele deu para casa, se haviam de andar
todos tão bem vestidos e comidos. Mas eu não posso estar zangada muito tempo e
ela já sabe isso. Ontem nem quis pegar na minha Glória à vista de ninguém, mas
quando a apanhei sozinha no berço ia-a comendo com beijos. Ah!, não queria
senão ter um mocinho, meu...
Estas
queixas e lamentações pueris repetiam-se diariamente, mas eu nem lhes prestava
atenção, e delas zombava, todo embebido na posse do seu corpo, que era
admirável e dispensava, para ser adorado, quaisquer enfeites espirituais. A
princípio a inevitável mistura com o resto da família tão-pouco me
impressionava; achava-lhe até certo pitoresco, e, coisa curiosa, foi preciso
muito estudo para distinguir ao longe a voz de Maria Adelaide das vozes das
irmãs e da mãe, quando a não via e apenas a ouvia. Era uma voz vibrante, com o
tom cristalino, que se perdia, ao baixar, em inflexões quentes, moduladas
cromaticamente, sem asperezas. Um dia, porém, Maria Adelaide desabafou, com uma
pena que lhe vinha do fundo da alma, para me dizer que a desonravam
mesmo na presença do pai, que era um desgraçado, um pobrezinho, que ficava
calado e não a sabia defender. Gostava muito do pai, muito; desejava-lhe fortuna,
felicidade, tudo quanto fosse bom, mas a miúdo também lhe desejava a morte, só
para não haver pé de dizerem diante dele aquelas coisas... E, sempre indignada
e desconfiada com todos, e chorando porque um desconhecido, ao passar-lhe em
frente da casa, vendo-a à janela, exclamara para a companheira: ah!, ela é sardosa?,
pois pu… e gulosa...
Mas
eu sempre a rir, e como reparasse num quadro novo, pendurado na parede,
representando um monstro crucificado, no
género Senhor de Alvor, perguntei: e que bicho tão feio é aquele?, ela rindo
com os olhos marejados de lágrimas, mas sorrindo já, tapava os ouvidos, corria
para a velha cama e ia esconder a cabeça debaixo das almofadas». In
Manuel Teixeira-Gomes, Maria Adelaide, 1938, Romances Portugueses, Obras Primas
do século XX, Coordenação de Davis Mourão-Ferreira, Círculo de Leitores,
Cortesia da Livraria Bertrand, 1986.
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