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A Biblioteca Universal
«(…) Demétrio havia sido o plenipotenciário da
biblioteca. Por vezes o rei passava os rolos em revista, como manípulos de soldados.
Quantos rolos temos?, perguntava. E Demétrio o actualizava sobre os números.
Tinham-se proposto um objectivo, haviam feito cálculos. Haviam estabelecido
que, para recolher em Alexandria os livros de todos os povos da terra, seria necessário
um total de 500 mil rolos. Ptolomeu elaborou uma carta a todos os soberanos e
governantes da terra, na qual pedia que não hesitassem em lhe enviar' as obras
de todos os gêneros de autores: poetas e prosadores, retóricos e sofistas, médicos
e adivinhos, historiadores e todos os outros mais. Ordenou que fossem copiados
todos os livros que por acaso se encontrassem nos navios que faziam escala em
Alexandria, que os originais fossem retidos e aos proprietários fossem entregues
as cópias; esse fundo foi posteriormente chamado de o fundo dos navios. Vez por outra, Demétrio fazia uma exposição
escrita ao soberano, que começava assim: Demétrio ao grande rei. Em obediência à
tua ordem de acrescentar às colecções da biblioteca, para completá-la, os
livros que ainda faltam, e de restaurar adequadamente os defeituosos, dediquei
grande cuidado, e agora faço-te um relatório etc..
Num desses relatórios, Demétrio ilustrava a conveniência
de adquirir também os livros da lei judaica. É necessário, prosseguia, que
esses livros, sob forma correcta, tenham lugar em tua biblioteca. E, seguro de
recorrer a um nome bem-vindo ao soberano, invocava a autoridade de Hecateu de Abdera,
que em suas Histórias do Egipto
tanto espaço dedicara à história judaica. O argumento de Hecateu, conforme é
citado por Demétrio, era um tanto curioso. Soava mais ou menos assim: não
admira que, em sua maioria, os autores, poetas e a multidão de historiadores não
tenham mencionado aqueles livros e os homens que viveram e vivem de acordo com
eles; não por acaso se abstiveram, devido ao elemento sagrado neles contido. Quando
já se contavam 200 mil rolos, Demétrio voltou ao assunto durante uma visita do
rei à biblioteca. Dizem-me, assim se dirigindo ao soberano, que as leis dos
judeus também são livros dignos de transcrição e inclusão em tua biblioteca. Está
bem, respondeu Ptolomeu, e o que te impede de providenciar essa aquisição? Como
sabes, tens à tua disposição tudo o que é necessário, homens e meios. Mas é preciso
traduzi-los', observou Demétrio, estão escritos em hebraico, não em siríaco,
como geralmente se crê; é uma língua totalmente diferente. Quem menciona este
diálogo garante tê-lo presenciado pessoalmente. Era um judeu da comunidade de
Alexandria, a grande e laboriosa comunidade radicada no palácio, instalada no
mais belo bairro, lamentava um anti-semita empedernido como o gramático Apião,
um bairro destinado aos judeus, dizia-se, pelo próprio Alexandre. Perfeitamente
helenizada na língua e na cultura, essa empreendedora personagem soubera aproveitar-se
de uma mimetização perfeita para entrar na corte e aí conquistar crédito e
amizades. Um problema da sua comunidade, que lhe parecia muito agudo, era a
utilização, então dominante, mas sempre combatida pelos ortodoxos, da língua
grega nos ofícios da sinagoga. Podemos supor que conseguiu ser contratado,
gozando na corte da protecção de correligionários ou simpatizantes, como adido à
biblioteca. Do que escreve, deduzimos que soube manter oculta a sua ligação com
a comunidade judaica, e que continuou a falar e escrever sobre os judeus como
um povo interessante, mas diferente. Dos materiais de escrita e da confecção
dos rolos fala com tal perícia e propriedade de linguagem que nos leva a imaginá-lo
como zeloso e estimado diaskeuastés
(curador de textos); portanto, sempre subindo na confiança de Demétrio e inspirador,
junto a ele, da proposta respeitosamente insistente de também abrir as
prateleiras da biblioteca do rei à lei judaica. Mas é exactamente isso: temos
de imaginar, pelo
menos em parte, na medida em que nosso autor fala muito pouco de si. Diz que
seu nome é Aristeu e tem um irmão chamado Filócrates: dois nomes genuinamente
gregos, mas que também serão usuais entre os judeus da diáspora, cada vez mais impregnados
daquilo que os ortodoxos desdenhosamente chamavam de helenismo; que é amigo dos
dois chefes da guarda pessoal de Ptolomeu, Sosíbio de Tarento e André; que presenciou,
nas dependências da biblioteca, o diálogo entre Demétrio e o soberano; por fim,
que participou da missão enviada por Ptolomeu a Jerusalém, para conseguir bons
tradutores». In Luciano Canfora, A
Biblioteca Desaparecida, 1986, Companhia das Letras, 1989, ISBN
978-857-164-051-1.
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