jdact
A
cidade. Colónia. 1435
«(…)
Por isso, reservara para ele o final do discurso. O novo burgomestre rogou-lhe
que conduzisse todos os presentes numa prece. Cedeu-lhe a posição frente à
assistência e Heller colocou-se junto à esposa. Sem olhar para ela, tomou-lhe a
mão e adoptou uma atitude piedosa. Agripina baixou a cabeça e ouviu com fervor
as palavras do arcebispo. Um solene ámen, encheu toda a praça. Nesse
instante, os músicos fizeram soar os seus instrumentos e o silêncio desapareceu
numa onda, tal como chegara. O público dirigiu-se aos diferentes locais que o
alcaide havia disposto para que os seus concidadãos pudessem deleitar-se
bebendo. De imediato foi lançada para trás das costas a piedade das palavras: o
júbilo, as risadas e os bailes tornaram-se donos do centro da cidade.
Dentro
do edifício, Heller dirigiu-se à sala para onde ele próprio havia convocado as
autoridades a fim de celebrar a ascensão ao poder e onde já os aguardava o
banquete pronto para o selecto grupo de comensais. Todos se apressaram a felicitar
Heller pela nomeação e pelo discurso. Diferentemente do que acontecia na rua,
ali corria o vinho mais delicioso. Um homem alto, de uns cinquenta anos, com uma
larga boina magenta a combinar com a elegante túnica de tecido pesado e de
requinte, esperava o momento para iniciar os elogios. Os meus mais sinceros
parabéns, Burgermeister. Acompanhou as palavras com uma breve inclinação
do corpo. Obrigado, meu bom Nikolas, respondeu, colocando especial ênfase no bom.
Ides deleitar-nos com a vossa presença no banquete que a corporação preparou? Com
certeza. Vós sabeis que a ocasião o merece, Herr…
Heller
interrompeu-o, levantando a mão. Não há formalismos entre nós... Espero que
desfruteis dos manjares que o consistório entendeu por bem preparar para
celebrar este humilde acto. Não fiqueis afastado de mim, Nikolas. Noutro momento
falaremos das vossas…, habilidades. Não duvideis. Estou à vossa inteira
disposição, disse Nikolas Fischer enquanto franqueava a passagem ao burgomestre
e à esposa com uma reverência. Agripina contemplava inebriada a conversa. A
presença de tantas personalidades desorientava-a, pois na sua vida quotidiana
via-se sempre rodeada das mesmas serviçais, de modos artificiais e melosos. O seu
rosto ruborizou-se quando o homem da bela túnica magenta também a observou:
surpreendida nos seus pensamentos, o olhar inteligente daquela figura parecia
conhecê-los. Por um momento sentiu-se aturdida.
Um a
um, foram desfilando todos os convidados. De cada qual, Heller procurou armazenar
na memória o tom com que se referiam a ele, desejoso de distinguir os que estavam
realmente contentes com a sua nomeação. Descobrir onde poderia ocultar-se o inimigo
iria ser, a partir daquele instante, uma das suas tarefas quotidianas. O último
a entrar foi o arcebispo. Heller tomou-lhe a mão entre as suas e, ajoelhando-se,
beijou-lhe o anel. Bem, bem... Descontraí-vos, burgomestre. Heller apertou os dentes
para simular um trejeito de orgulho. Hoje é o vosso dia. Reconheço que me surpreendeu
o vosso belo discurso… Calou-se por um segundo, com a atenção fixada no bulício
proveniente do exterior. Não há dúvida de que soubestes ganhar o coração dos
cidadãos. Os olhos do arcebispo divergiam das suas amáveis palavras. Coroados por
espessas sobrancelhas que caíam apontando ao cenho como flechas, mostravam-se duros,
impenetráveis. Heller recordou-se do que se dizia: mais do que um havia tremido
perante aquele olhar furibundo. Não foi mais do que um acto de agradecimento à
cidade que tanto me tem dado, excelência reverendíssima. Estou convencido de
que o Senhor se coloca ao lado daqueles que sabem ser agradecidos, assentiu o arcebispo
com um leve sorriso. Heller sentiu um leve calafrio na nuca. Inclinou-se de novo
enquanto o arcebispo deu a bênção, para se voltar lesto para a mesa do banquete.
As suas mandíbulas estavam apertadas. A seu lado, Agripina suspirou. Que se passa
contigo?, perguntou o marido, contrariado. Nada. É que o arcebispo foi tão
amável ao saudar-nos... Não é verdade, esposo meu?
Uma figura
esbelta, conquanto larga de ombros, atravessava a praça do município. Ia envolta
numa túnica azul e num grande capuz da mesma cor que lhe ensombrava o rosto. Na
praça, a celebração encontrava-se num momento culminante. Um homem bochechudo e
rosado munido de uma enorme caneca de barro transbordante de cerveja interpôs-se
no seu caminho. Pareceis um monge. Escapastes do mosteiro para virdes aqui, irmão?
Soltou uma gargalhada que tresandava a álcool. O desconhecido não lhe respondeu.
O homem, contrariado, afastou o capuz com um puxão. Céus, se não é um galhardo jovem!
Acaso serves de escudeiro a algum cavaleiro? O outro continuava sem lhe responder.
Só o cabelo ondulado e loiro se agitava quase imperceptivelmente. Os olhos, estranhamente
escuros, estavam fixos no rosto do interlocutor.
O quê?
Não dizes nada? O olhar turvo tornou-se sério. Acaso não estás contente com o nosso
novo Burgermeister? És um desses desbocados que dizem que o grande Heller
Overstolz é um assassino? Ah! Desgraçados! O seu rival morreu quando foi assaltado
por meliantes, precisamente uma das muitas coisas que Heller resolverá! Decerto!
Perante o silêncio, o homem franziu os lábios, visivelmente incomodado. Toma, bebe.
Colocou-lhe a caneca frente ao rosto, firme. Vamos. Bebe! O jovem, após meditar
um momento, segurou com uma só mão a caneca, sem a levar à boca. Por que esperas?
Não estamos a celebrar?, insistiu o barrigudo, arrastando as palavras. Aproximou
então a caneca dos lábios, levantou-a com rapidez e bebeu todo o seu conteúdo. Virou-a
de boca para baixo para demonstrar ao bêbedo que já tinha terminado». In
Eduardo Roca, A Oficina dos Livros Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o
Mundo, 2011, tradução de Óscar Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN
978-989-754-015-8.
Cortesia de
MarcadorE/JDACT