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A
pedra do exílio
Planalto
de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…)
O acampamento dos sobreviventes de Crécy reunia-se em torno de uma velha igreja
bem visível da estrada. Não estava delimitado por paliçadas ou fossados, a única
defesa consistia num reduzido número de sentinelas. Maynard esperou que o carro
se detivesse e depois pediu a ajuda de Nicolas para descer. Teve de permanecer agarrado
ao seu braço e manter-se em equilíbrio sobre a perna direita, apesar de sentir que
o espírito se revigorava. Estava finalmente de pé e podia observar tudo do alto
da própria estatura. Acompanhando os seus movimentos pelo canto do olho, Jérôme
ergueu-se do lugar do condutor, recomendou à mulher que esperasse de rédeas na mão
e apressou-se a juntar-se a ele. Foi imobilizado por dois soldados. Não façais mal
a este bom homem, interveio de repente o cavaleiro, veio até aqui para me ajudar.
Um dos dois armeiros correu ao seu encontro, agarrando-o pelo colarinho. Quem sois
para vos expressardes com tal desaforo? Maynard libertou-se com um gesto displicente
da mão. O sangue e a lama da minha roupa deveriam falar por si, respondeu,
erguendo o queixo. Sou cavaleiro de sua majestade e senhor de Rocheblanche. Exijo
ser recebido neste acampamento para me reunir aos milites meus iguais. Perdoai
o equívoco, insistiu a sentinela, mas no mau estado em que vos encontrais
poderíeis passar por aldeão. Nicolas, gritou o cavaleiro, impaciente, mostrai a
minha espada a este pedaço de asno, para que possa observar o brasão da linhagem
que se encontra no guarda-mão.
O jovem
obedeceu. Pouco depois, o soldado teve de se render às evidências e inclinar-se
numa vénia. Peço desculpa, vossa senhoria, balbuciou, não podia saber... Mavnard
não lhe prestou a mais pequena atenção. Voltou-se, pelo contrário, para o tapeceiro,
que finalmente se encontrava livre de movimentos: mestre Jérôrne, os nossos caminhos
separam-se aqui. No entanto, antes de nos despedirmos, peço-vos que me deis algo
em que possa escrever. Tenho pena e tinta, disse o homem, incapaz de interpretar
aquele insólito pedido, mas o único pergaminho de que disponho é a pele que uso
para anotar as minhas contas... Não pretendo tanto, basta-me um pedaço de pano.
Cada vez mais confuso, o tapeceiro revistou entre os haveres, no carro, e
apareceu com uma peça de cânhamo de urdidura suficientemente densa para que se
pudesse escrever por cima. Rocheblanche pegou nela, mergulhou a pena na tinta e
escreveu algumas linhas, às quais apôs a própria assinatura. Assim saldo a minha
dívida, disse, restituindo o tecido.
Espero
que chegue. O homem analisou o texto. Não compreendo... Maynard fixou-o,
divertido. Não dissestes que vos dirigíeis a Paris? Sim, é verdade. Ora, encontrar
alojamento perto da Cité ser-vos-á difícil e custar-vos-á muito dinheiro.
Permiti-me portanto recomendar-vos ao meu reverendo tio Antoine Tempier, prior da
Igreja de Saint-Denis. Quando chegardes a Paris, procurai-o e mostrai-lhe este pano.
Podeis ficar certos de que vos arranjará aposentos dignos onde podeis viver e dedicar-vos
ao vosso mester. Senhor, é demasiada generosidade…, agradeceu-lhe Jérôme, comovido.
Nada em comparação com a vossa, respondeu o cavaleiro. Outra pessoa ter-me-ia abandonado
à morte e à chuva na estrada. Vós, pelo contrário, tomastes conta de mim, salvando-me
de morte certa. Tendes o meu respeito e a minha amizade, e bateu-lhe com uma
mão no ombro. Se alguma vez, por infelicidade, vós e a vossa família
incorrerdes em alguma dificuldade, contai sempre comigo. Depois de um aceno de despedida,
Maynard voltou-se para o mais novo das duas sentinelas. Dai-me o vosso braço, para
poder caminhar direito, ordenou-lhe em voz severa. Pousou então o olhar no impertinente
que o agarrara pelo pescoço. E, vós, ide ao carro buscar as peças da minha armadura
e levai-as para um alojamento onde eu possa ficar. Cuidai que seja confortável,
caso contrário mandar-vos-ei açoitar!» In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem
Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN
978-989-724-278-6.
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