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Desgraçadamente, o mogno, verbi gratia, não resiste ao caruncho como
resiste o antes mencionado ébano ou pau-ferro. A prova está feita pela
experiência dos povos e dos madeireiros, mas qualquer de nós, se animado de
espírito científico bastante, poderá fazer a sua própria demonstração usando os
dentes numa e noutra madeira e julgando a diferença. Um canino normal, mesmo
nada preparado para uma exibição de força dental circense, imprimirá no mogno
uma excelente e visível marca. Não o fará no ébano. Quod erat demonstrandum.
Por aqui poderemos avaliar as dificuldades do caruncho. Nenhuma investigação
policial será feita, embora este fosse justamente o momento propício, quando a
cadeira apenas se inclinou dois graus, posto que, para dizer toda a verdade, a
deslocação brusca do centro de gravidade seja irremediável, sobretudo porque a
não veio compensar um reflexo instintivo e uma força que a ele obedecesse;
seria agora o momento, repete-se, de dar a ordem, uma severa ordem que fizesse
remontar tudo, desde este instante que não pode ser detido até não tanto à
árvore (ou árvores, pois não é garantido que todas as peças sejam de tábuas
irmãs), mas até ao vendedor, ao armazenista, à serração, ao estivador, à
companhia de navegações que de longe trouxe o tronco aparado de ramos e raízes.
Até onde fosse necessário chegar para descobrir o caruncho original e
esclarecer as responsabilidades. É certo que se articulam sons na garganta, mas
não conseguirão dar essa ordem. Apenas hesitam, ainda, sem consciência de
hesitar, entre a exclamação e o grito, ambos primários. Está por- tanto
garantida a impunidade por emudecimento da vítima e por inadvertência dos
investigadores, que só pro forma e rotina virão verificar, quando a cadeira acabar
de cair e a queda por enquanto ainda não fatal estiver consumada, se a perna ou
pé foi malevolamente cortado e criminosamente também. Humilhar-se-á quem tal
verificação fizer, pois não é menos que humilhante usar pistola no sovaco e ter
um toco de madeira carunchosa na mão, esfarelando-o debaixo da unha que para
isso nem precisaria de ser tão grossa. E depois arredar com o pé a cadeira
partida, sem ao menos irritação, e deixar cair, também cair, o pé inútil, agora
que acabou o tempo da sua utilidade, que precisamente é a de se ter partido.
Em
algum lugar foi, se é consentida esta tautologia. Em algum lugar foi que o
coleóptero, pertencesse ele ao género Hilotrupes ou Anobium ou outro (nenhum
entomologista fez peritagem e identificação), se introduziu naquela ou noutra
qualquer parte da cadeira, de qual parte depois viajou, roendo, comendo e
evacuando, abrindo galerias ao longo dos veios mais macios, até ao sítio ideal
de fractura, quantos anos depois não se sabe, ficando porém acautelado,
considerada a brevidade da vida dos coleópteros, que muitas terão sido as
gerações que se alimentaram deste mogno até ao dia da glória, nobre povo nação
valente. Meditemos um pouco na obra pacientíssima, esta outra pirâmide de
Queóps, se isto são maneiras de grafar egípcio em português, que os coleópteros
edificaram sem que dela nada pudesse ver-se por fora, mas abrindo túneis que de
qualquer modo irão dar a uma câmara mortuária. Não é forçoso que os faraós
sejam depositados no interior de montanhas de pedras, num lugar misterioso e
negro, com ramais que primeiro se abrem para poços e perdições, lá onde deixarão
os ossos, e a carne enquanto não for comida, os arqueólogos imprudentes e
cépticos que se riem das maldições, naquele caso como se diz egiptólogos, neste
caso como se deverá dizer lusólogos ou portugalólogos, a seu tempo chamados.
Ainda sobre estas diferenças de lugar onde se faz a pirâmide e esse outro onde
vai instalar-se ou é instalado o faraó apliquemos el cuento e digamos,
de acordo com as sábias e prudentes vozes dos nossos antepassados, que num
lado se põe o ramo e no outro se vende o vinho. Não estranhemos portanto
que esta pirâmide chamada cadeira recuse uma vez e outras vezes o seu destino
funerário e pelo contrário todo o tempo da sua queda venha a ser uma forma de
despedida, constantemente voltada ao princípio, não por lhe pesar assim tanto a
ausência, que mais tarde será para longes terras, mas para cabal demonstração e
compenetração do que despedida seja, pois é bem sabido que as despedidas são
sempre demasiado rápidas para merecerem realmente o nome. Não há nelas nem
ocasião nem lugar para o desgosto dez vezes destilado até à pura essência, tudo
é balbúrdia e precipitação, lágrima que vinha e não teve tempo de mostrar-se,
expressão que bem quereria ser de profunda tristeza, ou melancolia como outrora
se usou, e afinal fica careta, ou ficacareta que é evidentemente pior. Caindo
assim a cadeira, sem dúvida cai, mas o tempo de cair é todo o que quisermos, e
enquanto olhamos este tombo que nada deterá e que nenhum de nós iria deter,
agora já sabido irremediável, podemos torná-lo atrás como o Guadiana, não de
medroso, porém de gozoso, que é modo celestial de gozar, também sem outra
dúvida merecido. Aprendamos, se possível, com Santa Teresa de Ávila e o
dicionário, que este gozo é aquela sobrenatural alegria que na alma dos justos
produz a graça. Enquanto vemos a cadeira cair, seria impossível não estarmos
nós recebendo essa graça, pois espectadores da queda nada fazemos nem vamos
fazer para a deter e assistimos juntos. Com o que fica provada a existência da
alma, pela demonstrativa via de um efeito que, dito está, precisamente não
poderíamos experimentar sem ela. Torne pois a cadeira à sua vertical e comece
outra vez a cair enquanto à matéria voltamos. Eis o Anobium, que este é o nome
eleito, por qualquer coisa de nobre que nele há, um vingador assim que vem do
horizonte da pradaria, montado no seu cavalo Malacara, e leva todo o tempo
necessário a chegar para que passe o genérico por inteiro e se saiba, se nenhum
de nós viu os cartazes no átrio da entrada, quem afinal de contas realiza isto».
In
José Saramago, Objecto Quase, 1978, Editorial Caminho, colecção O Campo da
Palavra, 1998, ISBN 978-972-210-292-6.
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