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e wikipedia
O
peso e a leveza
«O
eterno retorno é uma ideia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu
dificultar a vida a não poucos filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se
viveu se há-de repetir outra vez e que essa repetição se há-de repetir ainda
uma e outra vez, até ao infinito! Que significado terá este mito insensato? O
mito do eterno retorno diz-nos, pela negativa, que esta vida, que há-de
desaparecer de uma vez por todas para nunca mais voltar, é semelhante a uma
sombra, é desprovida de peso, que, de hoje em diante e para todo o sempre, se
encontra morta e que, por muito atroz, por muito bela, por muito esplêndida que
seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor não têm qualquer sentido. Não
vale mais do que uma guerra qualquer do século XIV entre dois reinos africanos,
embora nela tenham perecido trezentos mil negros entre suplícios
indescritíveis. Mas algo se alterará nessa guerra do século XIV entre dois
reinos africanos se, no eterno retorno, se vier a repetir um número
incalculável de vezes? Sem dúvida que sim: passará a erguer-se como um bloco
perdurável cuja estupidez não terá remissão. Se a Revolução Francesa se
repetisse eternamente, a historiografia francesa orgulhar-se-ia com certeza
menos do seu Robespierre. Mas, como se refere a algo que nunca mais voltará,
esses anos sangrentos reduzem-se hoje apenas a palavras, teorias, discussões,
mais leves do que penas, algo que já não aterroriza ninguém. Há uma enorme
diferença entre um Robespierre que apareceu uma única vez na história e um
Robespierre que eternamente voltasse para cortar a cabeça aos franceses. Digamos,
portanto, que a ideia do eterno retorno designa uma perspectiva em que as
coisas não nos aparecem como é costume, porque nos aparecem sem a circunstância
atenuante da sua fugacidade. Essa circunstância atenuante impede-nos, com
efeito, de pronunciar um veredicto. Poderá condenar-se o que é efémero? As
nuvens alaranjadas do poente iluminam tudo com o encanto da nostalgia; mesmo a
guilhotina.
Não
há muito, eu próprio me defrontei com o facto: parece incrível mas, ao folhear
um livro sobre Hitler, comovi-me com algumas das suas fotografias; faziam-me
lembrar a minha infância passada durante a guerra; diversas pessoas da minha
família morreram nos campos de concentração dos nazis, mas o que eram essas
mortes comparadas com uma fotografia de Hitler que me fazia lembrar um tempo
perdido da minha vida, um tempo que nunca mais há-de voltar? Esta minha
reconciliação (???) com Hitler deixa entrever a profunda perversão inerente ao
mundo fundado essencialmente sobre a inexistência de retorno, porque nesse
mundo tudo se encontra previamente perdoado e tudo é, portanto, cinicamente
permitido.
Se
cada segundo da nossa vida tiver de se repetir um número infinito de vezes,
ficamos pregados à eternidade como Jesus Cristo à cruz. Que ideia atroz! No
mundo do eterno retorno, todos os gestos têm o peso de uma insustentável responsabilidade.
Era o que fazia Nietzsche dizer que a ideia do eterno retorno é o fardo mais
pesado (das schwerste Gewicht). Se o eterno retorno é o fardo mais
pesado, então, sobre tal pano de fundo, as nossas vidas podem recortar-se em
toda a sua esplêndida leveza. Mas, na verdade, será o peso atroz e a leveza
bela? O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos contra o solo.
Mas, na poesia amorosa de todos os séculos, a mulher sempre desejou receber o
fardo do corpo masculino. Portanto, o fardo mais pesado é também, ao mesmo
tempo, a imagem do momento mais intenso de realização de uma vida. Quanto mais
pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real
e verdadeira é. Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser
humano se torne mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser
terrestre, torna-o semi-real e os seus movimentos tão livres quanto
insignificantes.
Que
escolher, então? O peso ou a leveza? Foi a questão com que se debateu
Parménides, no século VI antes de Cristo. Para ele, o universo estava dividido
em pares de contrários: luz-sombra; espesso-fino; quente-frio; ser-não ser.
Considerava que um dos pólos da contradição era positivo (o claro, o quente, o
fino, o ser) e o outro, negativo. Esta divisão em pólos positivos e negativos
pode parecer de uma facilidade pueril. Excepto num caso: o que é positivo: o
peso ou a leveza? Parménides respondia que o leve é positivo e o pesado,
negativo. Tinha razão ou não? O problema é esse. Mas uma coisa é certa: a
contradição pesado-leve é a mais misteriosa e ambígua de todas as contradições».
In
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, 1983, Publicações dom Quixote, 2013,
ISBN 978-972-200-002-4.
Cortesia
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