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e wikipedia
«O ditador caiu duma cadeira, os árabes
deixaram de vender petróleo, o morto é o melhor amigo do vivo, as coisas nunca
são o que parecem, quando vires um centauro acredita nos teus olhos, se uma rã
escarnecer de ti atravessa o rio. Tudo são objectos. Quase». «Se o homem
é formado pelas circunstâncias, é necessário formar as circunstâncias
humanamente». Marx e Engels, in “A Sagrada Família”
A
cadeira
«A
cadeira começou a cair, a ir abaixo, a tombar, mas não, no rigor do termo, a
desabár. Em sentido estrito, desabar significa caírem as abas a. Ora, de
uma cadeira não se dirá que tem abas, e se as tiver, por exemplo, uns apoios
laterais para os braços, dir-se-á que estão caindo os braços da cadeira e não
que desabam. Mas verdade é que desabam chuvadas, digo também, ou lembro já,
para que não aconteça cair em minhas próprias armadilhas: assim, se desabam
bátegas, que é apenas modo diferente de dizer o mesmo, não poderiam afinal
desabar cadeiras, mesmo abas não tendo? Ao menos por liberdade poética? Ao
menos por singelo artifício de um dizer que se proclama estilo? Aceite-se então
que desabem cadeiras, embora seja preferível que se limitem a cair, a tombar, a
ir abaixo. Desabe, sim, quem nesta cadeira se sentou, ou já não sentado está,
mas caindo, como é o caso, e o estilo aproveitará da variedade das palavras,
que, afinal, nunca dizem o mesmo, por mais que se queira. Se o mesmo dissessem,
se aos grupos se juntassem por homologia, então a vida poderia ser muito mais
simples, por via de redução sucessiva, até à ainda também não simples
onomatopeia, e por aí fora seguindo, provavelmente até ao silêncio, a que
chamaríamos o sinónimo geral ou omnivalente. Não é sequer onomatopeia, ou não é
formável ela a partir deste som articulado (que não tem a voz humana sons puros
e, portanto, inarticulados, a não ser talvez no canto, e mesmo assim conviria
ouvir de mais perto), formado na garganta do tombante ou cadente, embora não
estrela, palavras ambas de ressonância heráldica que estão designando agora
aquele que desaba, pois não se achou correcto juntar a este verbo a desinência
paralela (ante) que perfaria a escolha e completaria o círculo. Desta maneira
fica provado que não é perfeito o mundo. Já de perfeita se apelidaria a cadeira
que está a cair. Porém, mudam-se os tempos, mudam-se vontades e qualidades, o
que foi perfeito deixou de o ser, por razões em que as vontades não podem, mas
que não seriam razões sem que os tempos as trouxessem. Ou o tempo. Importa
pouco dizer quanto tempo este foi, como pouco importa descrever ou simplesmente
enunciar o estilo de mobiliário que tornaria a cadeira, por obra de
identificação, membro de uma família decerto numerosa, tanto mais que como
cadeira pertence, por natureza, a um simples subgrupo ou ramo colateral, nada
que se aproxime, em tamanho ou função, desses robustos patriarcas que são as
mesas, os aparadores, os guarda-roupas ou pratas ou louças, ou as camas, das
quais, naturalmente, é muito mais difícil cair, senão impossível, pois é ao
levantar da cama que se parte a perna ou ao deitar que se escorrega no tapete,
quando partir a perna não foi precisamente o resultado de escorregar no tapete.
Nem cremos que importe dizer de que espécie de madeira é feito tão pequeno
móvel, já de seu nome parece que fadado ao fim de cair, ou será
conto-do-vigário linguístico esse latim cadere, se cadere é
latim, porque devia sê-lo. Qualquer árvore poderá ter servido, excepto o pinho
por ter esgotado as virtudes nas naus da índia e ser hoje ordinário, a
cerejeira por empenar facilmente, a figueira por rasgar à traição, sobretudo em
dias quentes e quando por causa do figo se vai longe de mais no ramo; excepto
estas árvores pelos defeitos que têm, e excepto outras pelas qualidades em que
abundam, como é o caso do pau-ferro onde o caruncho não entra, mas que padece
de peso demasiado para o volume requerido. Outra que também não vem ao caso é o
ébano, precisamente porque é apenas diferente nome de pau-ferro, e já foi visto
o inconveniente de utilizar sinónimos ou supostos serem-no. Muito menos nesta
destrinça de questões botânicas que de sinónimos não cuida, mas cuida de
verificar dois diferentes nomes que a gente diferente deu à mesma coisa.
Pode-se apostar que o nome de pau-ferro foi dado ou pesado por quem teve de o
transportar às costas. Aposta pela certa e ganha.
Se
de ébano fosse, teríamos provavelmente de acoimar de perfeita a cadeira que
está caindo, e acoimar ou encoimar se diz porque então não cairia ela, ou viria
a cair muito mais tarde, daqui por exemplo a um século, quando já não nos
valesse a pena sua de cair. É possível que outra cadeira viesse a cair no lugar
dela, para poder dar a mesma queda e o mesmo resultado, mas isso seria contar
outra história, não a história do que foi porque está acontecendo, sim a do que
talvez viesse a suceder. O certo é bem melhor, principalmente quando muito se
esperou pelo duvidoso. Porém, uma certa perfeição haveremos de reconhecer nesta
afinal única cadeira que continua a cair. Foi construída não de propósito para
o corpo que nela tem vindo a sentar-se desde há muitos anos mas escolhida por
causa do desenho, por acertar ou não contradizer em excesso o resto dos móveis
que estão perto ou mais longe, por não ser de pinho, ou cerejeira, ou figueira,
vistas as razões já ditas, e ser de madeira costumadamente usada em móveis de
qualidade e para durar, verbi gratia, mogno. É esta uma hipótese que nos
dispensa de ir mais longe na averiguação, aliás não deliberada, da madeira que
serviu para dela cortar, moldar, afeiçoar, grudar, encaixar, apertar e deixar
secar a cadeira que está caindo. Seja pois o mogno e não se fale mais no
assunto. A não ser para acrescentar quanto é agradável e repousante, depois de
bem sentados, e se a cadeira tem braços, e é toda ela mogno, sentir sob as
palmas das mãos aquela dura e misteriosa pele macia da madeira polida, e, se
curvo o braço, o jeito de ombro ou joelho ou osso ilíaco que essa curva tem». In José
Saramago, Objecto Quase, 1978, Editorial Caminho, colecção O Campo da Palavra, 1998,
ISBN 978-972-210-292-6.
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