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É melhor enterrarmo-nos em casa e evitar um desastre como o que vitimara a sua mãe,
na Grécia. Se não fosse pela sensação incómoda de que devia à mãe e a ela
própria conhecer a ilha em que Kitty morrera, nunca teria deixado Lee pagar-lhe
a viagem para o cerimonial fúnebre em Creta. E, evidentemente, ficara intrigada
quando a tia lhe pedira para entregar os documentos na Biblioteca Sansoviniana,
em Veneza. Fora a primeira vez que a tia Beatrice tomara a sério o trabalho de
Luce como arquivista e sentia-se orgulhosa por lhe ter sido concedido o papel
de guardiã dos documentos da família.
Voltou
a colocar o diário, cuidadosamente, na sua caixa de arquivo, juntamente com as
fotocópias e o manuscrito árabe. Pela janela, avistava filas de telhados de
terracota, brilhando ao sol da manhã. Afinal, acabaria por ser um dia
ensolarado. Fechou as cortinas e começou a despejar a mochila, comprada numa loja
de campismo local. Primeiro, o kit de pêndulo que a mãe lhe oferecera alguns
natais antes. Depois, o seu monte de livros. A par de As Pedras de Veneza
e o seu Guia Básico de Veneza, trouxera alguns ensaios sobre Casanova,
um texto encadernado, Casanova: o Homem Que Realmente Amava as Mulheres,
por Lydia Flem, e uma bastante manuseada cópia do primeiro volume de História
da Minha Vida, por Jacob Casanova, descrevendo a sua infância veneziana.
Tivera de deixar em casa os outros volumes de memórias, assim como uma estimada
cópia do seu único romance, Icosameion, uma fantasia de ficção
científica surpreendentemente moderna, acerca de uma nova raça humana que vivia
nas entranhas da terra. Em seguida: uma pequena mala de roupa com a maquilhagem
da mãe, que ainda retinha o aroma do perfume dela. Alinhou os livros no parapeito
da janela e começou a arrumar as suas roupas novas. Não eram do seu estilo
habitual, mas pretendera algo de mais vivo, para aliviar o espírito. Pendurou
três blusas de chiffon semitransparentes e três vestidos coleantes e
voltou a dobrar cuidadosamente os minúsculos tops de licra e as lindas
calças Malibu brancas que comprara para usar na Grécia.
Seguindo
o conselho de Lee, emalara também um cachecol de lã e a sua camisola favorita, um
patchwork de coloridas sedas chinesas cosidas nos ombros, porque Veneza
era fresca na Primavera. Inesperadamente, os dedos fecharam-se sobre a
figurinha que Lee lhe oferecera naquela manhã e ela empurrou-a mais para o
fundo da mochila. Luce não soube quanto tempo dormiu. Vestiu um par de calças
de ganga e a camisola favorita, depois voltou a tirar o diário da sua
antepassada de dentro da caixa. Devia levá-lo com ela? Usar a cópia de leitura fornecida
por Charles Smith não pareceria tão pessoal. As suas folhas soltas, fotocopiadas,
não ostentavam a tinta original, a impressão da mão de um escritor. Embora
soubesse que não devia, não conseguiu resistir. Embrulhou o diário no tecido
sem ácido da caixa de arquivo e colocou-o dentro de uma mochila pequena. Foi à
recepção procurar as instruções que Lee lhe deixara e percorreu as ruas de
Veneza transportando o diário da sua antepassada.
Já
era um pouco tarde para usar óculos de sol, mas ela tinha falta de vista e
precisava das lentes para ver à distância. Na praça, deparou com uma celebração.
Uma figura de vestes vermelhas e rendas caminhava, oscilante, em direcção à
basílica, carregando uma cruz de ouro do tamanho de uma pessoa. A figura
escarlate era seguida por uma grande multidão de homens, mulheres e crianças,
cantando um hino em latim. Sentiu um ligeiro temor, como se observasse um
misterioso rito antropológico. A tia Beatrice era o último membro da família a
crer numa doutrina cristã formal. Insistira em levar Luce, quando esta era
pequena, aos serviços anglicanos e mostrara-lhe, orgulhosamente, o antigo
exemplar de família de A Boa Noite do Optimista. Mantido unido por fita
gomada, o muito manuseado livrinho de alegres axiomas listava mais de 230
entradas, incluindo a recomendação de lord Byron, segundo a qual fazer o seu melhor
é o caminho para a bênção.
Havia
a mãe, claro, mas o tipo de religião que esta professava não era nada a que se
pudesse chamar cristão. E, de qualquer forma, suspeitava de que uma auto-ilusão
premeditada se ocultava no seio de todas as convicções religiosas, um
deliberado pôr de lado aquilo que é verdade, em favor daquilo que o crente
necessita que seja verdade, semelhante à suspensão da descrença durante um
filme ou uma peça de teatro. Virando as costas à basílica, seguiu as instruções
de Lee e deu por si no restaurante Da Raffaele. Saiu para o terraço, com mesas
dispostas ao longo do canal, e viu o jovem fotógrafo do táxi aquático a beber um
cappuccino. Vestia algo que pareceu a Luce um fato de mágico: um casaco
preto que lhe assentava mal, com lapelas brilhantes, e também um ligeiro brilho
nas costuras dos ombros. A enorme máquina fotográfica repousava na cadeira a
seu lado. Pôs-se de pé, sorrindo, e ela virou-se timidamente, fingindo não o
ver. Menina!, gritou ele e, quando ela se virou, impressionada pela sua
persistência, uma explosão de luzes floresceu por trás da cabeça dele, como
relâmpagos minúsculos, vários flashes simultâneos que iluminaram a sua
bonita expressão devoradora». In Susan Swan, Casanova Revisitado, 2005,
tradução de Fernanda Semedo, Editorial Estampa, Lisboa, 2007, ISBN
978-972-332-345-0.
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