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O
Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…)
Ali, no seu jardim, por detrás dos terrenos onde, mais tarde, João, o Rei
perfeito e odiado por tantos, erigiu o hospital sob a devoção de
Todos-os-Santos, mestre Tadeu construíra o seu Éden para apetrechamento da sua
botica que, também, era a parte aparente do seu laboratório de Adepto secreto,
de buscador da verdade e de mim mesmo, cabritinho. Que pena, mestre
Tadeu, tu reres partido já e me teres deixado! Há instantes na nossa vida, só
porque conhecemos alguém que o destino fez cruzar nosso caminho, que valem todo
o seu percurso. O horto de mestre Tadeu faz-me recordar um poeta, Poliziano:
«Donzelas,
encontrei-me numa bela manhã,
em meados
de Maio, num verde jardim.
À
minha volta havia violetas e lírios,
entre
a erva verde. e graciosas flores novas
azuis,
amarelas, brancas e vermelhas:
pus
a minha mão no coração delas
para
enfeitar meus cabelos ruivos...»
Meus
cabelos são louros e mestre Tadeu colocou a mão sobre a minha fronte, olhou-me
nos olhos e afirmou, com aquele sorriso leve a aflorar-lhe a boca carnuda,
muito vermelha: aguenta-te, rapaz. Vamos tratar disto. Podia ser pior. Depois
saiu. Meu tio Gil, que o trouxera, afagou-me o rosto: calma, filho, o homem de
Alexandria, às vezes, faz milagres. Só mais tarde soube que os físicos mais
importantes do Ocidente tinham de passar por Alexandria. Até hoje. A velha
escola médica ainda funciona. Não sei se o bom Tadeu me concedeu o privilégio de
me oferecer as goras mágicas que retirou do tubo de vidro onde destilava o
espírito do mercúrio, do enxofre, do arsénio e do sal amoníaco, como ensinou
Vicente Beauvais, ou me ofereceu o reflexo da matéria-prima através daquela
beberagem insípida que ingeri durante sete dias de mistura com as gotas de
orvalho destiladas pelo filtro das madrugadas. Não sei se mestre Tadeu retirou
a sabedoria do Talmude, das palavras mágicas de Salomão ou dos livros cobertos
de pó do seu Scriptorium, por onde exercia nos domínios da memória a
aprendizagem diária do seu saber.
Não
sei, nem me interessou na altura, se foi com o auxílio de Matthaeus Sylvaticus
ou de Nicolau Myrepso ou de Avicena, que ele me recambiou a maldita doença. Uma
manhã vi que a urina que vertia para o pote de cobre e que a minha mãe
despejava numa tigela de barro claro, para observar se continha sangue, estava clara,
levemente amarelo-acastanhada, mas que o sangue vermelho já não deixava
depósito no fundo em borras escuras. Mais três dias, deixei de ter dores e
fiquei são. A febre desapareceu. Quase a chorar, agarrei-me a ele, percorrido
pela gratidão. Sorridente, afastou-me: calma, rapaz. Fiz isso por ti, mas que
ninguém saiba. Fi-lo pela tua juventude, pelos teus, pelo teu tio. Não quero
problemas. Por uma coisa destas uma familiar minha foi queimada em Espanha. Por
lá ainda é pior o ódio ao médico judeu. A desgraçada curou um frade e, sobre a
mezinha, fez uma reza, uma oração banal. O malandro salvou-se mas denunciou-a
como feiticeira. Foi queimada com os livros todos que tinha na botica. Agora deixa-te
de histórias com rameiras. Que te fique de emenda. Podia ser pior. Estás
curado.
Ainda
pensei ir para Pisa, pois soubera da transferência da Universidade de Florença
para lá. Isto foi no ano em que Ivan III de Moscovo casou com a neta do infeliz
derradeiro imperador bizantino e declarou Moscovo a Terceira Roma, e, em
Agosto, a Princesa dona Joana foi para o convento de Aveiro. Toda a Élente se
espantou. Primeiro
Odivelas,
depois Aveiro. O príncipe não gostou e tentou tudo para a convencer do contrário.
Estávamos informados através de João da Paz, ainda apenas Yacoub, e de Isaac Abravanel,
responsável pelas finanças e também conselheiro, nesse capítulo, do duque de
Bragança. A ida de dona Joana para o Convento das Dominicanas foi um choque
muito profundo para o irmão». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica
Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa
2002, ISBN 972-23-1942-6.
Cortesia de
EPresença/JDACT