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Noite insone para Elvira. Mudar os panos de linho na cabeça da sua ama, trocar-lhe
a roupa molhada depois de a febre ceder, cantar-lhe trovas antigas que ela mesma
lhe ensinara, de tanto as ouvir as velhas aias. Viu-a sorrir duas vezes. Talvez
lhe tivesse devolvido o colorido da infância, o perfume dos campos de Zamora,
Llodio, Nájera ou Vizcaya. Batem palmas na entrada principal. Só pode ser Pelayo,
mais ninguém lhes faz visitas pela manhã, nem Diego Lopez Salcedo depois de lavrado
o testamento. Elvira vem ao patamar, de dedo colado aos lábios. Subi, padre, de
mansinho. A febre serenou e a minha senhora dorme. Dona Mencia abre os olhos
quando o clérigo entra. Já não há sinal de nuvem no seu rosto Deixai Elvira falar,
o que ela quis dizer é que dormito, acordada. Folgo de vos encontrar melhor,
senhora dona Mencia. Melhor por quê, don Pelayo? É só um intervalo, uma
vigília, mas o que importa dói, há-de afogar-me não tarda muito tempo. E o que vos
dói assim tanto, senhora? Engole em seco, de olhos postos no tecto, ou à procura
das palavras certas, ou a travar a emoção. Saber que Sancho partiu cuidando que
eu o traíra…, é isso que tanto dói. Leva a mão à garganta para reprimir o
soluço. Elvira faz-lhe um afago no queixo com a ponta do indicador e afasta-se,
para não chorar por ela. Já tiveram aquela conversa dúzias de vezes, nas últimas
semanas.
Desce
as escadas traseiras para mergulhar no quintal. Os pássaros acordam, um tracejado
irregular nas árvores enquadradas pelo muro pardo. Espreguiçam as asas pequeninas,
frágeis como a lonjura. Senta-se no banco de pedra, de cabeça inclinada para
trás. Quantas saudades da sua Ourém no cheiro do amanhecer. Por que tão pronto acedera
em vir com dona (Mecia) Mencia, que em Castela dizem Mencia? As aias biscainhas
tinham ficado em Coimbra, quando aquilo aconteceu. Era preciso enfraquecer o rei
roubando-lhe a mulher, era preciso enfraquecer a rainha destruindo os poucos
laços que lhe davam força.
Contava
ela há vinte e quatro anos, mal chegavam a Plasencia, como aquele homem
malcheiroso a arrebatara do leito, de mão peluda na sua boca pequena para lhe afogar
os gritos. Consumido pela angústia, o coração quase lhe explodia no peito a tentar
chamar por Sancho, no quarto em frente do seu, sem conseguir. E nem Martim Gil Soverosa,
vencido pelo cansaço, dava pelos gemidos abafados, ou pelos passos do brutamontes
no lajedo. Depois era pior: a mordaça na mata, enquanto o raptor, tresandando a
vinho e suor, lhe levantava o vestido quase a consumar o acto, não fora o aviso
oportuno de um dos homens. Cuidado, Reimão, nosso senhor Afonso de Bologne não quer
semente plantada no corpo dela. Se germinar, lá dirá que é do seu rei e tudo fica
perdido...
Ele
apertava as pernas para conter o ímpeto, apalpava-lhe os seios com prazer de macho
arreitado, passava-lhe a língua pelos lábios ressequidos. Por fim tirava o lenço
do rosto, ufano de revelar a identidade: era Raimundo Viegas Portocarreiro, um varão
da cúria que muito bem conhecia. Do cimo da sua altivez grosseira ria muito, então
e depois, quando entregava o corpo quase desfalecido em Ourém aos adeptos do curador
do reino. Ameaçada pelos privados do bolonhês, enquanto o camareiro dele, Pedro
Ourigues, espreitava por uma frincha da porta. Se não quisesse renunciar ao marido,
não lhe dariam a vila onde agora se encontrava. Pois se já lhe pertencia, por doação
do esposo... Sancho corria depois a Ourém com os seus homens, tentava subir ao recinto
do castelo berrando por ela como um louco. Como resposta risos de escárnio, uma
chuva de pedras e setas atiradas sem respeito sobre o seu cavalo. E deixava tombar
o escudo, como se preferisse a esmola da morte que não lhe queriam dar, retirando-se
humilhado para o paço de Coimbra. Chorava, diziam os seus privados...
Também
ela vertia quentes lágrimas, de mãos a tapar o rosto. E vivia o degredo de
muitas violações e ameaças piores, até lhe quebrarem o ânimo. E agora, aceitais
os nossos termos? Davam-lhe Herrin de Campo e outras terras pequenas, se abdicasse
das suas vilas e senhorios no reino de Portugal. Que lhe importavam a ela? Nada
queria, a não ser a liberdade. Repetia, já sem forças, que só queria ser livre,
mas ninguém fazia caso. E deixava de articular palavra com os olhos perdidos lá
fora em lugar nenhum, como se esperasse, no movimento do córrego entre campos
cultivados, uma entidade secreta que a pudesse libertar. Dava pelos
cultivadores de enxada às costas como mortos vivos, por mulas carregadas de farinha
para alimentar o castelo, por escassos almocreves que em dias certos passavam,
mas ninguém aparecia para saber do seu estado. Só um raio de sol a entrar pelas
lumieiras, ou as estrelas na imensidão da noite, eram sinais de bonança, como os
ramos das giestas pintalgados de 1uar». In Maria Helena Ventura, Conheces Sancho?
Edições Saída de Emergência, 2016, ISBN 978-989-637-951-3.
Cortesia de
ESdeEmergência/JDACT