sábado, 18 de fevereiro de 2017

O Livro dos Perfumes Perdidos. MJ Rose. «Quando era miúda, costumava acreditar que esta luz era uma ponte que permitia atravessar do mundo dos vivos para o dos mortos»

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Alexandria. Egipto. 1799
«(…) A luz mudou. Jac sabia que eram as nuvens a deslocar-se, mas a impressão que criara era a de que o anjo respirava. Seria tão bonito acreditar que um anjo de pedra podia ganhar vida. Que havia heróis que nunca desiludiam. Que a mãe falava de facto com ela da tumba. Ah, mas falo mesmo, veio a resposta sussurrada ao pensamento mudo de Jac. Sabes que sim. Sei o quanto achas perigoso acreditar em mim, mas fala comigo, querida. Faz-te bem. Jac pôs-se de pé e começou a desembrulhar as flores que levara. Nunca falava com o espectro. A mãe não estava ali. Aquela manifestação era provocada por uma anomalia no seu cérebro. Vira a ressonância magnética na secretária do pai e lera a carta do médico. Jac tinha na altura catorze anos, mas mesmo agora precisaria de ver o significado de algumas palavras no dicionário. O exame revelara o que os médicos apelidavam de uma ligeira redução de volume na substância branca no lobo frontal, à zona onde por vezes se encontravam vestígios de doença psicótica. E isso provava que não era a sua imaginação hiperactiva que a fazia sentir que estava a ficar louca, mas um distúrbio que os médicos podiam observar.
Contudo, não era algo que pudessem tratar. O prognóstico a longo prazo era incerto. A doença podia nunca vir a tornar-se mais pronunciada. Ou então podia desenvolver tendências bipolares. O médico recomendou terapia imediata em conjunto com um ciclo de psicofármacos para aliviar os sintomas. Jac arrancou o invólucro de celofane e amachucou-o, fazendo-o crepitar ruidosamente, mas não o suficiente para abafar a voz da mãe. Sei que isto é perturbador para ti, querida, e lamento muito. Assim que compôs os ramos na urna, sob a janela de vitral na parede virada a oeste, estes começaram a perfumar o ar. Jac habitualmente preferia aromas mais secos e lenhosos. Especiarias fortes e almíscar. Musgo e pimenta com um leve vestígio de rosa. Porém, aquela flor de perfume doce era a preferida da mãe, por isso trazia-a ano após ano e permitia que ela a recordasse de tudo aquilo de que sentia falta.
O céu escureceu e um súbito aguaceiro martelou o vidro. Agachando-se frente à urna, Jac sentou-se sobre os calcanhares e escutou as gotas apedrejarem com força o telhado e as janelas. Habitualmente, ficava ansiosa por passar à tarefa seguinte. Por mudar de cenário. Nunca tinha vontade de se deter. Faria qualquer coisa para evitar o tédio que convidava a um excesso de contemplação do género que não apreciava. Porém, ali, naquele jazigo, uma vez por ano, Jac sentia uma espécie de alívio doentio em ceder ao medo, ao pesar e à desilusão. Ali, naquele abismo, sob a triste luz azulada, podia ficar quieta e importar-se em demasia, ao invés de nem um pouco. Podia permitir-se abandonar-se às visões. Ser assustada por elas, mas não as combater. Apenas uma vez por ano. Apenas ali dentro.
Quando era miúda, costumava acreditar que esta luz era uma ponte que permitia atravessar do mundo dos vivos para o dos mortos. Jac quase conseguia sentir a mãe afagar-lhe o cabelo enquanto lhe falava naquele suave sussurro que costumava usar quando a ia deitar. Fechou os olhos. O som da tempestade preencheu o silêncio até Audrey voltar a falar. É o que ela é para nós, não é, querida? Uma ponte? Jac não falou. Não podia. Ficou à espera das palavras seguintes da mãe, mas, em vez disso, ouviu a chuva e depois o ranger das dobradiças, ao mesmo tempo que a pesada porta de ferro forjado e vidro se abria. Virando-se, foi atingida por uma rabanada de vento frio que entrava. Jac viu a silhueta de um homem e, por um momento, não percebeu se era real ou não.

Nanjing, China. 10 de Maio. 21h 05
O jovem monge baixou a cabeça por um instante, como que em oração, e acendeu um fósforo. A sua quietude e a calma que deixava transparecer eram quase beatíficas, um momento de profunda paz interior. A sua expressão mal se alterou, mesmo quando aproximou o fósforo aceso das roupas cerimoniais, ensopadas em querosene. Chamas, da mesma cor da sua túnica cor de açafrão, engoliram-no. Xie Ping desviou a sua atenção do website e olhou para os olhos de Cali Fong, sem surpresa por vê-los marejados de lágrimas. É um escândalo, murmurou ela com o lábio inferior a tremer». In M. J. Rose, O Livro dos Perfumes Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-039-3.

Cortesia de CAutor/JDACT