terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Grácia Nasi. Esther Mucznik. «Do casamento de Grácia com Francisco nasceu uma única menina, de nome de baptismo Ana, do nome bíblico Hanna, equivalente hebraico de Grácia, a quem chamavam Reina»

jdact

Se eu fosse rei de Lisboa,..., seria rei do mundo
«(…) Em meados do século XVI, nasce o Bairro Alto, primeiro bairro moderno, de Lisboa. Os ares considerados mais saudáveis das suas colinas e a construção da igreja de S. Roque pelos jesuítas, onde o rei e os nobres se reuniam, tornam o Bairro Alto na zona mais aristocrática da cidade. Até ao terramoto de 1755, o Bairro Alto distingue-se pelos seus bailes, teatros ao ar livre e tertúlias literárias, que caracterizavam a vida da nobreza lisboeta. É pouco provável que Francisco e Grácia habitassem o Bairro Alto. Devido ao comércio das especiarias a que se dedicava Francisco, talvez morassem perto das Alfândegas, nomeadamente a Alfândega Nova, do lado ocidental do Terreiro do Paço. Ou ainda com maior probabilidade na Rua Nova, na paróquia da Madalena, nas casas de quatro e cinco andares, de fachadas austeras rasgadas por janelas de venezianas e persianas de madeira, habitadas pelos grandes financeiros portugueses e estrangeiros. Com efeito, a rua Nova situava-se perto da antiga judiara grande, a qual apesar das conversões ainda era habitada por muitos cristãos-novos. A rua Nova também não ficava longe das judiarias da Teracenas ou Alfama, ambas situadas em frente da zona do porto e dos estaleiros navais.
Do casamento de Grácia com Francisco nasceu uma única menina, de nome de baptismo Ana, do nome bíblico Hanna, equivalente hebraico de Grácia, a quem chamavam Reina, um nome usado pelos sefarditas da época e até hoje. Mas poucos anos depois, em 1535, Francisco Mendes morre, ficando Grácia e o seu irmão Diogo, que dirigia a filial em Antuérpia, como gestores da sua imensa fortuna. A sua morte dá-se num momento dramático da vivência dos cristãos-novos. Em 1515, Manuel I pedira ao papa a instalação do tribunal da Inquisição (maldita) em Portugal para julgar os hereges, projecto que abandona em seguida. O seu filho e sucessor João III começou por aplicar a política de assimilação de Manuel I. Mas a vitalidade da prática judaizante de muitos cristãos-novos e o zelo religioso da rainha dona Catarina, irmã de Carlos V e neta dos Reis Católicos, foram progressivamente convencendo o rei a pedir ao papa Clemente VII a autorização de estabelecimento de um tribunal segundo o modelo espanhol.
Houve um elemento que terá contribuído para influenciar o rei nesse sentido: em 1525 chegara a Faro uma estranha personagem de nome David Reubéni, que se apresentava como emissário das dez tribos perdidas do Oriente, a fim de propôr ao rei uma aliança judaico-cristã para combater os Turcos. Portador de cartas de recomendação do papa, veio para Lisboa passando por Beja, Évora e Santarém e desencadeando à sua passagem um intenso fervor religioso entre a massa de cristãos-novos que o aclamavam como o Messias. Um funcionário da coroa, Diogo Pires, foi mesmo ao ponto de se circuncidar a si próprio e de o seguir mais tarde, mudando o seu nome para Salomão Molkho. Acabaram os dois nas fogueiras da Inquisição (maldita), Reubéni em Badajoz ou em Évora e Molkho em Mântua, mas este acontecimento que se enquadrava num messianismo crescente entre os cristãos-novos, terá provavelmente alertado João III para os perigos do seu alastramento não só entre os cristãos-novos, mas também entre a própria população cristã-velha, e contribuído para a sua decisão de instalar em Portugal a Inquisição (maldita). Graças a hábeis negociações e a uma política de donativos e subornos levadas a cabo por cristãos-novos, entre os quais Francisco e Grácia Mendes, a implantação do tribunal foi sendo adiada. Por pouco tempo: em 1536, a bula Cum ad Nihil Magis, assinada pelo papa Paulo III a 23 de Maio, estabelecia a Inquisição (maldita) em Portugal. O inquisidor geral era Henrique, o próprio irmão do rei...
Francisco Mendes deve ter previsto os acontecimentos e tentado salvar a família e o seu império das garras da Inquisição, porque em 1531 conseguiu obter do papa um breve de protecção para a sua família contra qualquer eventual acusação de heresia, mas morreu prematuramente. À sua morte, a fortuna familiar foi alvo da cobiça real que concebeu o plano de casar a filha de ambos, Ana, com um elemento do Paço, o que lhe permitiria apossar-se de metade da herança. Escreve H. P. Salomon: em 12 de Maio de 1537, o rei declarou explicitamente o seu desejo que a criança fosse imediatamente levada para a casa da rainha para nela estar, e se criar, e aprender todos os bons costumes […] e daí, com a fazenda que lhe seu pai leixou, a casará com uma pessoa honrada [...] Grácia acabara de fazer vinte e sete anos. Mas era dotada de uma personalidade forte e determinada, e o seu ardente apego às tradições ancestrais judaicas que partilhava com o marido nunca lhe permitiria aceitar tal plano, mesmo que ele significasse uma protecção para a sua família. Por outro lado, o próprio facto de o marido a nomear, em testamento, gestora da sua fortuna juntamente com o irmão Diogo era um indício provável de confiança no seu talento para os negócios e de alguma experiência neste campo». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A judia portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.

Cortesia de ELivros/JDACT