jdact
Se eu
fosse rei de Lisboa,..., seria rei do mundo
«(…)
Em meados do século XVI, nasce o Bairro Alto, primeiro bairro moderno, de Lisboa.
Os ares considerados mais saudáveis das suas colinas e a construção da igreja de
S. Roque pelos jesuítas, onde o rei e os nobres se reuniam, tornam o Bairro Alto
na zona mais aristocrática da cidade. Até ao terramoto de 1755, o Bairro Alto distingue-se
pelos seus bailes, teatros ao ar livre e tertúlias literárias, que caracterizavam
a vida da nobreza lisboeta. É pouco provável que Francisco e Grácia habitassem o
Bairro Alto. Devido ao comércio das especiarias a que se dedicava Francisco, talvez
morassem perto das Alfândegas, nomeadamente a Alfândega Nova, do lado ocidental
do Terreiro do Paço. Ou ainda com maior probabilidade na Rua Nova, na paróquia da
Madalena, nas casas de quatro e cinco andares, de fachadas austeras rasgadas por
janelas de venezianas e persianas de madeira, habitadas pelos grandes financeiros
portugueses e estrangeiros. Com efeito, a rua Nova situava-se perto da antiga
judiara grande, a qual apesar das conversões ainda era habitada por muitos cristãos-novos.
A rua Nova também não ficava longe das judiarias da Teracenas ou Alfama, ambas
situadas em frente da zona do porto e dos estaleiros navais.
Do casamento
de Grácia com Francisco nasceu uma única menina, de nome de baptismo Ana, do nome
bíblico Hanna, equivalente hebraico de Grácia, a quem chamavam Reina, um nome
usado pelos sefarditas da época e até hoje. Mas poucos anos depois, em 1535,
Francisco Mendes morre, ficando Grácia e o seu irmão Diogo, que dirigia a filial
em Antuérpia, como gestores da sua imensa fortuna. A sua morte dá-se num momento
dramático da vivência dos cristãos-novos. Em 1515, Manuel I pedira ao papa a instalação
do tribunal da Inquisição (maldita) em Portugal para julgar os hereges, projecto
que abandona em seguida. O seu filho e sucessor João III começou por aplicar a política
de assimilação de Manuel I. Mas a vitalidade da prática judaizante de muitos cristãos-novos
e o zelo religioso da rainha dona Catarina, irmã de Carlos V e neta dos Reis Católicos,
foram progressivamente convencendo o rei a pedir ao papa Clemente VII a autorização
de estabelecimento de um tribunal segundo o modelo espanhol.
Houve
um elemento que terá contribuído para influenciar o rei nesse sentido: em 1525 chegara
a Faro uma estranha personagem de nome David Reubéni, que se apresentava como emissário
das dez tribos perdidas do Oriente, a fim de propôr ao rei uma aliança judaico-cristã
para combater os Turcos. Portador de cartas de recomendação do papa, veio para
Lisboa passando por Beja, Évora e Santarém e desencadeando à sua passagem um intenso
fervor religioso entre a massa de cristãos-novos que o aclamavam como o Messias.
Um funcionário da coroa, Diogo Pires, foi mesmo ao ponto de se circuncidar a si
próprio e de o seguir mais tarde, mudando o seu nome para Salomão Molkho. Acabaram
os dois nas fogueiras da Inquisição (maldita), Reubéni em Badajoz ou em Évora e Molkho
em Mântua, mas este acontecimento que se enquadrava num messianismo crescente
entre os cristãos-novos, terá provavelmente alertado João III para os perigos do
seu alastramento não só entre os cristãos-novos, mas também entre a própria população
cristã-velha, e contribuído para a sua decisão de instalar em Portugal a Inquisição
(maldita). Graças a hábeis negociações
e a uma política de donativos e subornos levadas a cabo por cristãos-novos,
entre os quais Francisco e Grácia Mendes, a implantação do tribunal foi sendo adiada.
Por pouco tempo: em 1536, a bula Cum ad Nihil Magis, assinada pelo papa Paulo
III a 23 de Maio, estabelecia a Inquisição (maldita) em Portugal. O inquisidor geral era
Henrique, o próprio irmão do rei...
Francisco
Mendes deve ter previsto os acontecimentos e tentado salvar a família e o seu império
das garras da Inquisição, porque em 1531 conseguiu obter do papa um breve de
protecção para a sua família contra qualquer eventual acusação de heresia, mas
morreu prematuramente. À sua morte, a fortuna familiar foi alvo da cobiça real que
concebeu o plano de casar a filha de ambos, Ana, com um elemento do Paço, o que
lhe permitiria apossar-se de metade da herança. Escreve H. P. Salomon: em 12 de
Maio de 1537, o rei declarou explicitamente o seu desejo que a criança fosse imediatamente
levada para a casa da rainha para nela estar, e se criar, e aprender todos os
bons costumes […] e daí, com a fazenda que lhe seu pai leixou, a casará com uma
pessoa honrada [...] Grácia acabara de fazer vinte e sete anos. Mas era dotada
de uma personalidade forte e determinada, e o seu ardente apego às tradições ancestrais
judaicas que partilhava com o marido nunca lhe permitiria aceitar tal plano, mesmo
que ele significasse uma protecção para a sua família. Por outro lado, o
próprio facto de o marido a nomear, em testamento, gestora da sua fortuna juntamente
com o irmão Diogo era um indício provável de confiança no seu talento para os
negócios e de alguma experiência neste campo». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A
judia portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.
Cortesia de
ELivros/JDACT