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Cai
chuva do céu cinzento
«(…)
A luz baça de dia em que choveu ou trovejou era a mesma dos meus sonhos
acordados, mas o comandante não me podia parecer mais vago do que seria se
sonhado, apesar do aspecto robusto, gordo até, do rosto quadrado e do bigode tão
cheio quanto as suas carnes. Aquela imagem contrastava com o ar etéreo de quem
pertence já a outro mundo, como o meu pai, mas era o comandante que me parecia
onírico, pensei, desembarcando com o Chevalier de Pas, apertando a minha mão na
dele. Tal como não me recordava do olhar do Taco para mim aquando da despedida
naquele cais, também não me lembrava do do comandante, que passei a chamar papá.
Apenas me recordava do da mamã e dolorosamente me lembrava de que ela estava
feliz. Para ser completamente franco, havia um certo prazer neste sofrimento,
pois eu não podia ser alheio à felicidade da mamã. Ela estava cansada de estar
só e agora já não continuaria só. O que me causava dor, o que me esfrangalhava
os nervos, era a minha companhia não ser suficiente para ela não sentir esse
cansaço de estar só. E eu fiquei ainda mais cansado.
Como
já disse, não me lembrava dos olhares do Taco ou do comandante, mas também
havia coisas que não me recordava ter escrito. Por exemplo, encontro às
vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis escritos por
mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem
de um estranho; desconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu.
Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como
de um sono alheio. Era isso. Era como se me desconhecesse até nas minhas lembranças.
Houve
também quem sentisse as emoções da minha infância perdida em África, muitas
vezes pensava que não fui eu. Tenho a impressão que toda a minha infância está
em Lisboa, mas mesmo essa já não sei quem a sentiu. Ainda hoje não sei quem
sente o que eu estou sentindo. Mesmo as minhas recordações me parecem ser de
outras pessoas. Talvez por isso existissem coisas que recordo e tantas que me
fugiam nas malhas da memória, mesmo quando estava a comer um bombom de
chocolate ou a beber um copo de absinto, há muito que não bebia absinto,
fazia-me mal ao fígado. Havia os acontecimentos de África: não sabia se os
tinha esquecido ou se apenas os atirara para o fundo de um poço sem fundo. A
frase parece absurda, mas apenas significava que essas lembranças continuavam
em queda dentro de mim, talvez ainda me fosse possível apanhar algumas. Sabia
que nada disto tinha qualquer sentido, por isso mesmo continuava.
Seria
de esperar que o tempo provocasse o esquecimento progressivo, mas já percebi
que esse esquecimento é selectivo, embora não sinta qualquer intervenção nessa
escolha. Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a
minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora.
Tudo. Mas há acontecimentos, locais, nomes de ruas que aparecem na minha
memória como que a flutuar na massa escorregadia das outras recordações que se
perdem e que não sei ao certo se são minhas, do Ricardo Reis, do Álvaro de Campos
ou do Alberto Caeiro, ou se são aquelas que, desde que se criaram, continuam em
queda para o fundo do tal poço que não tem fundo. Esqueço-me
indefinidamente, esqueço mais do que podia lembrar.
Há
dias, melhor, há noites, em que as memórias me
afogam
no mar que é a minha cama e sinto-me um
náufrago
agarrado como última esperança ao meu
cobertor
como a um toco. O Chevalier de Pas não
vem
em meu auxílio porque já não sou criança,
embora
me sinta maís indefeso do que então. Mas
nessa
altura era feliz porque não tinha consciência
de
nada, da minha fragilidade, da minha solidão
e do
amor que era meu e me levaram. Sou mais
indefeso
agora porque sei que o sou, era feliz então
porque
não sabia que o era.
Náufrago
das minhas próprias memórias, nado por
Elas
como se dormisse, mas estou acordado e contorno-
as como
a ilhas onde habitassem piratas cruéis
ou feras
terríveis de várias cabeças com o dom de
dormirem
e despertarem à vez. Continuo, pois gosto
de
pensar que sou eu quem escolho as ilhas onde
aporto,
mas lembro-me e relembro-me e vejo que o
mar
que nado não me pertence, as memórias não
são
minhas e tudo não passa de uma insónia sem
fim.
Afinal não escolho nada e desperto como se
tivesse
dormido».
In
Sónia Louro, Fernando Pessoa, Saída de Emergência, 2014, ISBN
978-989-637-674-1.
Cortesia de
SdeEmergência/JDACT