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A
pedra do exílio
Planalto
de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…)
O carro de Jérôme Bataille já se havia afastado quando Maynard conseguiu finalmente
deitar-se num catre. Encontrara alojamento numa tenda próxima da igreja, uma habitação
digna, protegida de olhares indiscretos. Ordenou a um rapaz que lhe levasse uma
tina de água e pediu-lhe ajuda para se lavar, retirando uma moeda da bolsa que
trazia à cintura e lançando-lha. Arranja-me algo que comer e roupas em bom
estado, pediu. O rapaz agarrou na moeda em voo e aceitou, saindo da tenda com
uma vénia. Regressou pouco depois com roupas bem dobradas e uma escudela de
terracota. Enquanto esperava, Rocheblanche dedicara-se à ferida. Limpara-a com
um pano húmido, passando-o em volta da cauterização de modo a sentir algum
alívio. O inchaço diminuíra, mas não a dor. No entanto, não se queixava. Podia
dizer-se contente por ter saído quase ileso do inferno de Crécy. Perante a
espantosa mortandade de valorosos a que assistira, era de se perguntar se
sobrevivera por mera sorte ou em nome de um desígnio superior. Aliás, fora
apenas graças a ele que o segredo do rei da Boémia não se perdera. A questão
preocupava-o. Jang Blannen não se limitara a confiar um objecto à sua guarda.
Confessara-lhe uma traição, talvez nascida no seio das fileiras do exército
rea1. Maynard perguntou-se se seria lícito não o contar ao soberano, apesar do
juramento de silêncio.
Naquele
momento, viu o rapaz estender-lhe um casaco com mangas em balão e um par de
ceroulas de excelente corte. Esperando algo de mais modesto, olhou-o com desapontamento.
Onde os encontraste? O rapaz encolheu os ombros. Roubei-os, admitiu com um
sorriso, voltando a colocar a escudela cheia de caldo ao lado do catre. O
cavaleiro vestiu-se sem fazer comentários. Embora tivesse descansado, ainda se
sentia fraco. Ardia em febre e não tinha apetite, mas esforçou-se por sorver o
rancho na esperança de se recompor rapidamente. Pegou então numa segunda moeda
e mostrou-a ao jovem. Se souberes responder às minhas perguntas, também te dou esta,
prometeu, fazendo-a rodar entre os dedos. Sua majestade encontra-se neste
acampamento, não se encontra? Sim, senhor. Está na igreja em ruínas. Sabes se
já convocou um conselho de guerra? Não faço ideia. Então vais ter de descobrir,
disse o cavaleiro, e de te informar também sobre se sua majestade poderá
conceder uma audiência. Vai! Esperou que o rapaz saísse para se entregar a
outra questão importante. Pegou no pequeno rolo que lhe fora confiado por Jang Blannen
e retirou-o do anel cardinalício. Não o mostreis a ninguém... Nem ao meu
filho... E assim faria, pensou o cavaleiro, mas também queria descobrir qual
era o mistério pelo qual ele, João I da Boémia, fora traído. A folha de
pergaminho era de pequenas dimensões, podendo ser facilmente escondida atrás de
uma mão. Continha um texto sucinto, escrito em latim.
Missam
ut molam ab angelo in mare
est
Lapis exilii situs in Monte floris
nostra
salute clausus in uetusta crypta
sub
caelo historiis mire depicto
a meridie
Sancti Sauini in uilla Cerisii.
Maynard
franziu a testa, incapaz de compreender. Não era o significado das palavras que
lhe fugia, mas os conceitos a que faziam alusão. Parecia um enigma, como os que
por vezes são deixados pelos monges copistas nas margens dos textos por si
transcritos. Esforçou-se por descobrir um sentido, traduzindo em voz baixa.
Tal como
a pedra lançada ao mar pelo anjo
está
a pedra do exílio situada no monte da flor
para
nossa salvação encerrada numa vetusta cripta
sob
um céu de histórias maravilhosamente pintado
no
meridião de São Savino em villa Cerisio.
O
único indício compreensível encontrava-se na última linha, em que se fazia
referência à famosa Igreja de Saint-Savin de Vienne, surgida não longe de
Poitiers, perto de um local anteriormente conhecido como villa Cerisio. Fora
isto, o texto apontava para um misterioso Lapis exilii, pedra do exílio,
escondida numa cripta para nossa salvação, ou seja, a salvação do género
humano. A alusão à pedra e ao anjo, bem como ao céu pintado, representava um
verdadeiro dilema. O principal enigma, aquele que segundo Mavnard teria permitido
interpretar correctamente o texto, consistia porém nas palavras in monte
floris, no monte da flor. Tratava-se antes de mais de um local alto, uma
montanha ou uma colina. Era aí que se devia encontrar a vetusta cripta onde
estava encerrada a pedra do exílio. O cavaleiro não conseguia imaginar que arcano
tesouro poderia esconder-se nesse lugar. Fosse o que fosse, Jang Blannen obrigara-o
a jurar que guardaria segredo quanto ao pergaminho. Não poderia falar no assunto
nem ao rei Filipe VI». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem
Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN
978-989-724-278-6.
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