terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «Tal como a pedra lançada ao mar pelo anjo está a pedra do exílio situada no monte da flor para nossa salvação encerrada numa vetusta cripta»

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A pedra do exílio
Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…) O carro de Jérôme Bataille já se havia afastado quando Maynard conseguiu finalmente deitar-se num catre. Encontrara alojamento numa tenda próxima da igreja, uma habitação digna, protegida de olhares indiscretos. Ordenou a um rapaz que lhe levasse uma tina de água e pediu-lhe ajuda para se lavar, retirando uma moeda da bolsa que trazia à cintura e lançando-lha. Arranja-me algo que comer e roupas em bom estado, pediu. O rapaz agarrou na moeda em voo e aceitou, saindo da tenda com uma vénia. Regressou pouco depois com roupas bem dobradas e uma escudela de terracota. Enquanto esperava, Rocheblanche dedicara-se à ferida. Limpara-a com um pano húmido, passando-o em volta da cauterização de modo a sentir algum alívio. O inchaço diminuíra, mas não a dor. No entanto, não se queixava. Podia dizer-se contente por ter saído quase ileso do inferno de Crécy. Perante a espantosa mortandade de valorosos a que assistira, era de se perguntar se sobrevivera por mera sorte ou em nome de um desígnio superior. Aliás, fora apenas graças a ele que o segredo do rei da Boémia não se perdera. A questão preocupava-o. Jang Blannen não se limitara a confiar um objecto à sua guarda. Confessara-lhe uma traição, talvez nascida no seio das fileiras do exército rea1. Maynard perguntou-se se seria lícito não o contar ao soberano, apesar do juramento de silêncio.
Naquele momento, viu o rapaz estender-lhe um casaco com mangas em balão e um par de ceroulas de excelente corte. Esperando algo de mais modesto, olhou-o com desapontamento. Onde os encontraste? O rapaz encolheu os ombros. Roubei-os, admitiu com um sorriso, voltando a colocar a escudela cheia de caldo ao lado do catre. O cavaleiro vestiu-se sem fazer comentários. Embora tivesse descansado, ainda se sentia fraco. Ardia em febre e não tinha apetite, mas esforçou-se por sorver o rancho na esperança de se recompor rapidamente. Pegou então numa segunda moeda e mostrou-a ao jovem. Se souberes responder às minhas perguntas, também te dou esta, prometeu, fazendo-a rodar entre os dedos. Sua majestade encontra-se neste acampamento, não se encontra? Sim, senhor. Está na igreja em ruínas. Sabes se já convocou um conselho de guerra? Não faço ideia. Então vais ter de descobrir, disse o cavaleiro, e de te informar também sobre se sua majestade poderá conceder uma audiência. Vai! Esperou que o rapaz saísse para se entregar a outra questão importante. Pegou no pequeno rolo que lhe fora confiado por Jang Blannen e retirou-o do anel cardinalício. Não o mostreis a ninguém... Nem ao meu filho... E assim faria, pensou o cavaleiro, mas também queria descobrir qual era o mistério pelo qual ele, João I da Boémia, fora traído. A folha de pergaminho era de pequenas dimensões, podendo ser facilmente escondida atrás de uma mão. Continha um texto sucinto, escrito em latim.

Missam ut molam ab angelo in mare
est Lapis exilii situs in Monte floris
nostra salute clausus in uetusta crypta
sub caelo historiis mire depicto
a meridie Sancti Sauini in uilla Cerisii.

Maynard franziu a testa, incapaz de compreender. Não era o significado das palavras que lhe fugia, mas os conceitos a que faziam alusão. Parecia um enigma, como os que por vezes são deixados pelos monges copistas nas margens dos textos por si transcritos. Esforçou-se por descobrir um sentido, traduzindo em voz baixa.

Tal como a pedra lançada ao mar pelo anjo
está a pedra do exílio situada no monte da flor
para nossa salvação encerrada numa vetusta cripta
sob um céu de histórias maravilhosamente pintado
no meridião de São Savino em villa Cerisio.

O único indício compreensível encontrava-se na última linha, em que se fazia referência à famosa Igreja de Saint-Savin de Vienne, surgida não longe de Poitiers, perto de um local anteriormente conhecido como villa Cerisio. Fora isto, o texto apontava para um misterioso Lapis exilii, pedra do exílio, escondida numa cripta para nossa salvação, ou seja, a salvação do género humano. A alusão à pedra e ao anjo, bem como ao céu pintado, representava um verdadeiro dilema. O principal enigma, aquele que segundo Mavnard teria permitido interpretar correctamente o texto, consistia porém nas palavras in monte floris, no monte da flor. Tratava-se antes de mais de um local alto, uma montanha ou uma colina. Era aí que se devia encontrar a vetusta cripta onde estava encerrada a pedra do exílio. O cavaleiro não conseguia imaginar que arcano tesouro poderia esconder-se nesse lugar. Fosse o que fosse, Jang Blannen obrigara-o a jurar que guardaria segredo quanto ao pergaminho. Não poderia falar no assunto nem ao rei Filipe VI». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT