Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Depois do que nos sentámos à volta da mesinha (Kostka
tinha preparado café) e conversámos uns momentos (sentado no divã, constatava
com prazer a sua firmeza, não encovava nem guinchava). Kostka anunciou em
seguida que deveria retirar-se para voltar ao hospital, e apressou-se a
iniciar-me em certos segredos caseiros: É preciso fechar com força a torneira
da banheira, a água quente corre, contrariamente ao habitual, da torneira
marcada com a letra F, dentro do pequeno armário há uma garrafa de vodka
acabada de encetar. Em seguida, deu-me um molho com duas chaves e mostrou-me a
da porta do prédio e a do estúdio. Tendo dormido em inumeráveis camas ao longo
da minha vida, criei um culto particular pelas chaves, pelo que as fiz deslizar
para dentro do meu bolso com um júbilo silencioso. Kostka exprimiu ao partir o
voto de que o seu estúdio me proporcionasse qualquer coisa realmente bela. Sim,
disse-lhe, vai-me permitir efectuar uma bela destruição. Você acha que as
destruições podem ser belas?, disse Kostka, e eu sorri no meu íntimo pois que,
através daquela pergunta (proferida com doçura mas pensada combativamente) o reconheci
exactamente tal como ele era (simpático e cornico simultaneamente) quando do
nosso primeiro encontro há quinze anos atrás. Respondi-lhe: bem sei que você é
um pacífico operário na eterna obra divina e que ouvir falar em destruições lhe
desagrada, mas que hei-de fazer: eu por mim não sou um aprendiz de pedreiro de
Deus. Além disso, se os aprendizes de pedreiro de Deus construírem cá em baixo
edifícios com paredes verdadeiras, haverá poucas probabilidades de as nossas
destruições os prejudicarem. Mas parece-me que em vez de paredes não vejo por
todo o lado senão cenários. E destruir decorações é algo de muito justo.
Voltámos ao sítio onde nos tínhamos separado da última
vez (talvez há nove anos atrás); a nossa desavença revestia-se agora de uma
forma metafórica porque lhe conhecíamos bem o fundo e não sentíamos a
necessidade de voltar a ela. Precisávamos apenas de repetir que não havíamos
mudado, que continuávamos os dois igualmente diferentes um do outro (a esse
respeito, devo dizer que gostava dessa dissemelhança com Kostka e que tinha,
por isso, prazer em discutir com ele, pois que deste modo podia sempre, de
passagem, verificar quem, de facto, sou e o que penso). Assim, para me tirar
todas as dúvidas a seu respeito, respondeu-me: o que acabou de dizer soa bem.
Mas diga-me lá: céptico como é, onde foi buscar a certeza que o faz distinguir
o que é decoração do que é parede? Nunca lhe ocorreu duvidar de que as ilusões
de que faz troça não sejam realmente ilusões? E se está enganado? E se se
tratasse de valores, e você fosse um destruidor de valores? E acrescentou em
seguida: um valor destruido e uma ilusão desmascarada têm o mesmo corpo
lastimável, parecem-se e nada é mais fácil do que confundi-los.
Enquanto acompanhava Kostka no caminho para o hospital
situado na outra ponta da cidade, brincava com as chaves no fundo do meu bolso
e sentia-me bem ao lado do meu amigo de longa data, que era capaz de tentar
convencer-me da sua verdade fosse onde fosse, até agora, ao atravessar o
terreno desigual dos quarteirões novos. Kostka sabia sem dúvida que teríamos
por nossa conta toda a noite do dia seguinte, e por isso logo se deixou de
filosofias para passar aos assuntos banais, confirmando de novo que eu o
esperaria amanhã em sua casa quando ele regressasse às sete horas (ele próprio
não possuía outras chaves), e perguntando-me se não precisava realmente de mais
nada. Passei a mão pela cara e disse que precisava de passar no barbeiro, pois
tinha uma barba indecorosa. Vem mesmo a calhar, disse Kostka, arranjo-lhe um
barbeiro especial! Não recusei os bons préstimos de Kostka e deixei-me levar a
um pequeno salão onde em frente de três espelhos se encontravam plantadas três
grandes cadeiras giratórias, duas das quais ocupadas por dois homens de cabeça
inclinada e cara untada de creme. Duas mulheres de bata branca inclinavam-se
sobre eles. Kostka aproximou-se de uma delas e segredou-lhe qualquer coisa; a
mulher limpou a navalha com uma toalha e chamou para dentro: uma rapariga nova
de bata branca apareceu para prestar os seus cuidados ao senhor abandonado na
cadeira, enquanto a mulher a quem Kostka havia falado me dirigiu uma breve
inclinação de cabeça e me convidou com a mão a sentar-me na cadeira livre.
Kostka e eu despedimo-nos um do outro com um aperto de mão, e eu instalei-me, a
cabeça apoiada na almofada que servia de encosto, e, como desde há muitos anos
não gostava de olhar para a minha cara, esquivei-me ao espelho situado na minha
frente, ergui os olhos e deixei-os errar pelas manchas do tecto caiado de
branco.
Mantive os olhos pousados no tecto mesmo depois de
sentir no pescoço os dedos da cabeleireira, que entalavam no colarinho da minha
camisa a ponta de uma toalha branca. Depois ela afastou-se um passo, e não ouvi
mais do que o vaivém da lâmina a ser afiada no cabedal e deixei-me ficar numa espécie
de imobilidade beatífica cheia de feliz indiferença. Pouco depois, senti nas
faces os dedos húmidos a aplicarem o creme sobre a pele e apercebi-me dessa
coisa singular e incongruente: uma desconhecida que não me é nada, a quem eu
também não sou nada, acaricia-me docemente. Em seguida, com um pincel, a
cabeleireira pôs-se a espalhar o sabão e parecia-me não estar realmente
sentado, mas flutuar num espaço branco semeado de manchas. E então imaginava-me
(porque, mesmo nos momentos de repouso, as ideias não suspendem os seus jogos)
ser uma vítima sem defesa, totalmente submetido à mulher que tinha afiado a
lâmina». In Milan Kundera, A Brincadeira, 1967, Publicações dom
Quixote, Lisboa, 1994, ISBN 978-972-200-014-4(7), 2016, ISBN 978-972-205-917-6.
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