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O
Mosteiro dos Enganos
«(…)
Entretanto, os comparsas viram o abade Rainerio a sair do Castrum Abbatis. Fora
directo ao refeitório, mas sozinho. Caminhava curvado e mal-humorado. E o
hispânico, onde estará?, perguntou-se Ginesio. Está ali, olha. Vê-se à janela
do solar. Ginesio seguiu com o olhar o indicador do companheiro até um ponto preciso
do Castrum Abbatis. Encostado a uma janela geminada do segundo andar, viu duas
pessoas a conversar, o padre bibliotecário e o mercador de Toledo. O hispânico
está a falar com o padre Gualimberto, comentou, surpreendido. Vais ver que se
vão demorar por ali o tempo necessário, troçou Hulco, impaciente por cumprir as
ordens. Eu vou. Tu toma atenção para que ninguém entre. Ginesio não teve tempo
de lhe responder, pois o companheiro já se precipitara escadas abaixo.
Hulco
chegou ao quarto do mercador. Uma vez que não havia ninguém por ali, não
precisava de se preocupar com o barulho. Transposta a entrada, lançou os olhos
na direcção da cama. Desta vez o baú estava lá, bem à mostra. Não precisava de
se esforçar para o procurar. Avançou com os dedos sujos estendidos e estava já
prestes a tocar no baú quando alguém lhe encostou uma coisa cortante à
garganta. Uma faca! Não teve tempo de agir quando uma mão lhe agarrou o pulso
direito e o imobilizou. Os ossos da coluna estalaram. Hulco foi arrastado para
trás. O homem que o segurava era alto e movia-se com rapidez. Quase não se lhe
ouvia os passos. Era o fim, pensou. Era um homem morto.
A
lâmina começou a premir o pescoço. O metal enterrou-se na carne, abrindo um
golpe vermelho por debaixo da pele suja. De repente parou, e uma voz falou por
detrás do servo: se te encontro mais alguma vez a espiolhar este quarto,
corto-te a garganta. Hulco percebeu então de quem se tratava: devia ser o
mercador. Como diabos teria feito? Como conseguira entrar tão rapidamente, sem que
Ginesio conseguisse apanhá-lo? Um homem que se movia assim como um gato só
podia ser um necromante. O servo não teve tempo nem de reagir, nem de pensar em
mais nada. Foi atirado para a porta, e só então a faca se desencostou do
pescoço. A lâmina estava suja do seu sangue. Ignazio limpou-a debaixo do
casaco, esfregando-a sem pressa, depois agarrou-o por trás e afastou-o com um
pontapé no traseiro.
Hulco
foi arremessado para o exterior e bateu com o nariz e os joelhos no chão do
corredor. Pousou as mãos, dando uma volta o mais rapidamente possível para se
livrar do inimigo, mas encontrou-se com a lâmina apontada ao queixo. O mercador
estava curvado sobre ele. Manejava a faca com indiferença, como se brincasse
com uma pena de prata. Julgas, por acaso, que um labrego da tua laia consegue
fazer-me o ninho atrás da orelha? Ignazio esboçou um sorriso trocista, mas o tom
da sua voz era intimidatório. Vai-te embora daqui antes que eu reconsidere. O
servo recuou, mas o mercador prendeu-o pela gola. E vê se não te esqueces mais
disto!, exclamou, fazendo cintilar a lâmina diante dos seus olhos. Depois
largou-o. Hulco estremeceu, levou a mão ao pescoço ensanguentado e esgueirou-se
cabisbaixo.
Ignazio
viu-o afastar-se. Guardou a faca num bolso no interior da túnica, abriu o baú e
retirou uma saqueta de pele com as raízes para Gualimberto. Saiu do quarto,
desceu as escadas com calma e ao transpor a porta da hospedaria passou perto de
dois companheiros agachados por detrás do balcão, entretidos à conversar sobre
o sucedido. Ginesio olhou-o como se visse um fantasma e depois dirigiu-se a Hulco,
que ainda tremia. Asseguro-te que não o vi entrar! Não sei como conseguiu! Ignazio
troçou, satisfeito, e regressou ao Castrum Abbatis. Agora tinha a certeza de
que não voltariam a pôr os pés no seu quarto». In Marcello Simoni, O Mercador de
Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor,
Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.
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