Cortesia
de wikipedia e jdact
«Nos
últimos tempos, surgiu no mundo tal quantidade de romances e outras obras de
ficção que será difícil o público aceitar como verdadeira uma história que
oculta não só o nome real como também outras particularidades da protagonista,
por isso só nos cabe admitir que cada leitor forme sua própria opinião a
respeito das páginas que seguem e julgue a narrativa como melhor lhe aprouver. Imagina-se
que a autora conte aqui a sua própria história; logo nas primeiras linhas ela
expõe as razões pelas quais considera conveniente esconder o seu nome vero,
e depois disso em nenhum momento ela volta à questão. Na realidade, o texto
original dessa narrativa foi transcrito em outras palavras, da mesma forma como
se alterou um pouco o estilo da famosa senhora de quem falamos aqui: a
principal mudança consistiu no uso de um vocabulário menos cru que o utilizado
por ela, já que o original que nos chegou às mãos estava vazado numa linguagem
típica de uma delinquente presa em Newgate, nada apropriada a uma penitente humilde
e contrita, como ela professa ser. A pena empregada para aprimorar a sua
história e torná-la acessível, enfrentou sérias dificuldades para dar-lhe
trajes dignos de serem vistos e vertê-la numa linguagem digna de ser lida;
quando uma mulher dissoluta desde a juventude, e pior, filha da libertinagem e
do vício, se dispõe a relatar todas as suas práticas infames e até a estender-se
às ocasiões e circunstâncias especiais que a conduziram à devassidão, e narrar
toda a sua progressão na senda do crime ao longo de seis decénios, um autor se
vê à míngua de recursos para conferir a essa exposição uma forma recatada, que
não dê ensejo, sobretudo no caso de leitores de baixos instintos, a condutas
contrárias à sua intenção.
Portanto,
tivemos o máximo cuidado possível para que essa nova roupagem da história não
saísse eivada de imagens luxuriosas ou de frases lascivas, nem mesmo nas piores
situações descritas; em nome desse objectivo, foram suprimidas certas passagens
licenciosas de sua vida, não passíveis de narração decorosa, enquanto
abreviaram-se várias cenas: espera-se que o que remanesceu não escandalize os
leitores mais púdicos ou os ouvintes mais recatados, e como até da pior
história pode-se tirar o mais são proveito, esperamos que a moralidade faça o
leitor manter-se sério, mesmo quando, aqui ou ali, a história possa incliná-lo
ao contrário; contar a história de uma vida iníqua, porém da qual mais tarde o
personagem se arrepende, impõe que a parte deplorável seja mostrada com toda a
maldade que corresponda à realidade, a fim de realçar e conferir beleza à parte
do arrependimento, que decerto é a melhor e a mais fulgente, se narrada com
igual aptidão e vigor. Há quem diga que a narração do arrependimento não pode
ter a mesma exuberância, o mesmo brilho e a vivacidade da narração da parte
iníqua; se existe alguma verdade nessa ideia, permitam-me dizer, é porque não
houve igual prazer e fruição na leitura, e decerto é verdade que a diferença
reside menos no valor real do tema que no gosto e na inclinação do leitor. Não
obstante, como esta obra se dirige em especial aos que saberão lê-la e tirar
dela o melhor benefício, o que lhes é recomendado ao longo de toda a narrativa,
espera-se que a tais leitores agrade bem mais a moral que a fábula, mais a
lição que a narração, mais o fim da narradora que a vida da biografada. Abundam
nesta história incidentes interessantes, todos eles conducentes a lições úteis;
são narrados de forma agradável, que instrui o leitor num sentido ou outro, a
primeira parte da vida luxuriosa de Moll com o jovem cavalheiro de Colchester
contém grande número de incidentes que verberam a conduta viciosa e advertem aqueles
que se veem em situação semelhante quanto a seus resultados desastrosos, além
de censurar a conduta desatinada e reprovável de ambos, o que compensa com
sobras a descrição vívida que ela faz de sua insensatez e licenciosidade. O
arrependimento de seu amante em Bath e como o justificado alarme criado por sua
doença levou-o a abandoná-la, a judiciosa advertência feita contra intimidades
entre amigos próximos, incapazes de manter as resoluções mais solenes e
virtuosas sem ajuda divina, todas essas passagens hão de parecer, a uma pessoa
de senso, de beleza mais genuína que todos os episódios amorosos que os
antecedem.
Em
suma, como a narrativa foi criteriosamente depurada de toda frivolidade e
licenciosidade antes presentes, pode ser utilizada, com cuidado, para o
ensinamento da virtude e da religião: ninguém poderá, sem incorrer em manifesta
injustiça, lançar reprimenda alguma sobre ela ou sobre nossa decisão de
publicá-la. Em todas as épocas, os defensores do teatro brandiram o seguinte
argumento para persuadir o público de que suas peças são úteis e devem ser
toleradas pelos governos de todos os Estados, mesmo os mais civilizados e
religiosos: as suas obras têm propósitos virtuosos e, por mais vívidas que
sejam as representações, não deixam de recomendar a virtude e os princípios
generosos, assim como a censurar e condenar toda sorte de vícios e a corrupção
de costumes: se isso fosse verdade e se eles seguissem à risca essa norma como
pedra de toque de seus textos, muito haveria de ser dito em favor deles. Em
toda sua imensa variedade, este livro cinge-se de modo rigoroso ao seguinte
fundamento: não há acção indigna, em nenhuma parte dele, que não gere
infelicidade e infortúnio; não entra em cena um só vilão superlativo que não
tenha um fim malfadado ou não termine penitente; não se menciona um único
malfeito que não seja vituperado na passagem mesma em que é citado, como
tampouco nada de virtuoso e justo que não se faça acompanhar de louvor; o que
poderíamos melhor contrapor à regra fixada para recomendar até mesmo aquelas
representações de cenas a que se podem fazer objecções justas, como, por
exemplo, más companhias, linguagem obscena etc.?» In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722,
A vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN
978-972-104-443-2.
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