sábado, 25 de fevereiro de 2017

O Espião de João II de Portugal. Deana Barroqueiro. «Piscando um olho ao mercador que soluça, o corsário deita um pouco de cai no recipiente e agita-o»

jdact

O corsário de Malabar
«(…) Os corsários ocupam-se dos feridos, sem deixar de manter uma vigilância apertada sobre a tripulação e os viajantes, separados em dois grupos. Pêro observa como os passageiros guardam os mulheres no meio deles, para as proteger de qualquer ultraje. O capitão e o seu lugar-tenente abeiram-se dos mercadores e os homens que não estão de guarda acercam-se para participar na folia. Meus senhores, pede Timoja com irónica cortesia, dai-nos as vossas bolsas e as jóias, em paga do muito trabalho e dos mortos que houvemos na tomada do barco. O pai de Schaban e a maioria dos homens entregam as bolsas e as jóias que trazem postas. Quatro tratantes (aquele que faz negócios) caem de joelhos, numa ladainha de juras e súplicas: não trago dinheiro, meu senhor! Só mercadorias para vender em Goa. Sou Al-Qadi, um pobre mercador de panos, nada mais tenho além do que me haveis confiscado, capitão! Juro por Allah! Fio-me mui pouco em juras de mouros embusteiros, diz Timoja a rir e faz sinal aos seus homens. Dois corsários corpulentos sobem com Al-Qadi para um rebordo alto de madeira e, por entre gargalhadas de escárnio, suspendem-no pelos tornozelos, de cabeça para baixo, sacudindo-o como um trapo. A cabaia vira-se do avesso, descaindo para o pescoço e deixa à mostra as largas ceroulas de algodão e as meias atadas nos joelhos, ao mesmo tempo que uma chuva de moedas cai de um cinto de pano e rola pela cobertura.
Com que então não tinhas posses, cão mentiroso?!, achincalha Marakkar. Dêem-lhe umas chicotadas para lhe avivar a memória. O senhor que se segue... Capitão! Marakkar!, grita um grumete. Aquele ali engoliu umas pedras. Ora vede o ratoneiro de jóias! Achas-te mais esperto que os outros?, zomba o lugar-tenente, acercando-se do mercador, que, pálido de terror, se limita e abanar a cabeça numa negativa muda às perguntas do pirata. Engoliste as pedras, filho de moura barregã, para as cagares mais tarde? Não sabes que para grandes males há sempre grandes remédios? Um riso velhaco arrepanha-lhe a cara queimada como um esgar de desdém: Trazei-me um affabeh e um pouco de cal! O grumete entrega-lhe de imediato o jarro de bico fino e um punhado de cal, como se os tivesse preparado de antemão. Basta-me uma colher, pois não quero matar este cão antes de me dar as pedras ou terei de lhe abrir a pança. Solta as vestes e urina para dentro do cântaro usado para as abluções da boca e das mãos, provocando o murmúrio indignado dos prisioneiros.
Piscando um olho ao mercador que soluça, o corsário deita um pouco de cai no recipiente e agita-o. Segurem o porco mouro e abram-lhe a boca. Os algozes lançam ao chão o prisioneiro, a espernear e a guinchar, imobilizando-o. Marakkar enfia-lhe o bico do affabeh na boca, forçando-o a engolir a beberragem até ao fim, deixando-o enrodilhado no solo, a chorar de asco e humilhação. O veneno não tarda a fazer efeito e o mercador, num acesso de soluços e tremuras convulsivas, começa a vomitar como se fosse lançar os fígados pela boca. Até parece mouro encantado, a bolçar rubis e pérolas da boca p'ra fora! Como é que comeste tanta pedra, capado tinhoso, sem te esganares? Com insultos e pragas, os corsários recolhem do vomitado uma meia dúzia de pedras e pérolas de preço, enquanto o homem agoniza com o estômago desfeito, amaldiçoando-os. Botei cal em demasia e tirei-lhe o chiadouro, diz Marakkar, revirando-o com o pé para se certificar de que morrera e afastando-se em seguida. Agora os outros.
Já todos entregaram a pedraria!, corta Timoja, de cenho franzido, mostrando-lhe as bolsas das jóias que os três mercadores tinham feito aparecer de dentro das vestes, como por magia. Já tens o que querias. Então, vejamos as mulheres, pois as fêmeas mouras dão boas escravas e ainda melhores concubinas! Estalam uivos e gritos e as mulheres choram nos braços dos parentes. São sete, quatro persas e três árabes. Pêro já vira as primeiras junto dos pequenos pavilhões armados sobre a cobertura de canas e, quanto às arábias, apenas avistara uma matrona que não parava de rezingar a propósito de tudo e de nada com o marido, um mercador de tecidos de algodão; as duas restantes nunca tinham posto um pé fora do casulo de panos. Todas estão veladas, os rostos cobertos por um pedaço de tecido fino com uma estreita fenda para os olhos ou com uma espécie de pequeno avental de crinas de cavalo.
Marakkar afasta os prisioneiros da sua frente e, seguido de dois guardas armados, acerca-se das mulheres. Pêro e Schaban remexem-se inquietos, contorcendo os corpos numa vã tentativa de soltar as cordas. As vossas jóias, ó flores do Islão, entregai-nos as vossas jóias e nenhum mal vos sucederá. Estamos aqui para vos proteger e..., servir! A última frase, dita com ironia, provoca risos e doestos de grosseiro apreço. Pulseiras, colares, brincos e anéis passam para as mãos do lugar-tenente de Timoja. É tudo, minhas belas? Lembrai-vos de que pagareis caro pelo escondido... Ide buscar, sem detença, os vossos cofres de viagem! Os parentes das cativas protestam, querendo acompanhá-las, mas são mantidos em respeito pelas armas. Acompanhadas por um guarda, as mulheres entram nas tendas que lhes servem de habitação, já vasculhadas pelos corsários, com a mais velha a resmungar entre dentes contra os ladrões de honestos viajantes que mal ganham para viver». Deana Barroqueiro, O Espião de D. João II, na Demanda dos Segredos do Oriente e do Misterioso Reino do Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-258-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT