jdact
«(…)
O seu centro espiritual era a paisagem esquecida de Soma, onde o corpo atormentado
do jovem soldado foi um dia depositado na sua divindade fictícia; a sua sede temporal
era o Clube dos Correctores, onde, autênticos gnósticos (gnose; o corpo astral
dos que morrem prematuramente, creêm poder realizar actos corporais quando, com
efeito, não possuem corpo físico e agem em pensamento, Paracelso), os correctores
vinham, nas suas roupas de algodão, beber café, fumar charutos rançosos e contemplar
Capodistria, como os vagabundos dos cais contemplam um pescador ou um pintor. O
primeiro simboliza, para mim, as grandes conquistas do homem nos domínios da matéria,
do espaço e do tempo, que devem inevitavelmente abandonar o seu conhecimento, penosamente
adquirido, ao conquistador no seu túmulo; o outro não era um símbolo mas o limbo
vivo do livre-arbítrio, onde a minha bem-amada Justine errava em busca (no meio
de uma terrível solidão de espírito) do lampejo que lhe revelaria uma nova perspectiva
do seu ser. Nela, como verdadeira alexandrina, a licença era uma forma estranha
mas real de abnegação, uma máscara da liberdade; e se eu via nela um testemunho
da cidade não pensava em Alexandria, nem em Plotino, mas na filha infeliz de Valentino
que caiu, não como Lúcifer, por se ter rebelado contra Deus, mas pelo excessivo
desejo que tinha de se unir a Ele (a doutrina gnóstica considera a criação um erro...
Imagina um Deus primordial que engendrou manifestações de si próprio sob a forma
de casais macho-fêmea; cada casal era inferior ao precedente e Sofia, a sabedoria,
era a fêmea do trigésimo casal e a menos perfeita de todas). Tudo o que é em
excesso é pecado.
Separada
da divina harmonia, caiu, diz o filósofo trágico, e tornou-se a manifestação da
matéria; e todo o universo da sua cidade e do mundo nasceu da sua agonia e do seu
remorso. O gérmen trágico que engendrou os seus pensamentos era o gérmen de um gnosticismo
pessimista. Sei que esta identificação era real porque, muito mais tarde, quando
com tanta hesitação e maus presságios ela me permitiu entrar para o pequeno círculo
que todos os meses se reunia em torno de Balthazar, eram sempre as suas referências
ao gnosticismo as que mais a interessavam. Lembro-me da noite em que com tanto fervor
e humildade ela lhe perguntou se tinha interpretado correctamente o seu pensamento:
Quer dizer que Deus nunca nos criou nem tão-pouco pensou fazê-lo, mas que somos
obra de uma divindade inferior, um demiurgo, que se supunha Deus? Ah!, como isso
parece provável; e é esse hubris presunçoso que foi transmitido aos nossos
filhos. E de uma outra vez, íamos lado a lado, ela colocou-se, repentinamente, diante
de mim, e segurando-me as abas do casaco, olhou-me bem nos olhos e disse-me: e tu,
em que crês? Nunca dizes nada. Basta-te rir, uma vez por outra. Não sabia á que
lhe havia de responder; para mim todas as ideias se equivalem; o facto de existirem,
apenas prova que alguém as criou. Que me interessa que sejam objectivamente justas
ou falsas? De qualquer modo, não podem ficar indefinidamente no mesmo estado». In
Lawrence
Durrell, Quarteto de Alexandria, 1957, Justine, tradução de Daniel Gonçalves,
1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.
Cortesia de
PdQuixote/JDACT