jdact
O
Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…)
Desde novo aprendi, com um mestre-escola de muita perseverança que,
invariavelmente, se coçava porque os piolhos lhe enxameavam a cabeça, a
Gramática (o Latim foi, como para todos nós, a língua-mãe da escola), a Dialéctica,
a Música religiosa. De tudo aprendi um pouco no pequeno edifício anexo à Sé:
História Sagrada, rudimentos de oratória, de Moral e uns pequenos pós de
Teologia. Escutávamos o mestre, entre temerosos e circunspectos, à espera do
toque do sino ou do fungar irreprimível do bom velho que anunciava o fim do
sacrifício. Por seiscentas ou setecentas libras que lhe pagavam por ano, o
velho fazia o que podia, mas exigia ferozmente o que não conseguia dar. Meu pai
encarregou a minha mãe de falar com o tio Gil. Os Franciscanos eram exímios
educadores. Fui a aulas ao convento de S. Francisco. A Teologia encheu-me as
horas de estudos mais o Latim e a Gramática e a Filosofia. Recordo com ternura
o velho gato do convento, um deles (por causa da rataria e por ser um excelente
comedor de baratas), o Silvestre, façanhudo, preto e branco, de fartos bigodes
e aquele meio olhar amarelo-dourado, a pupila reduzida a uma linha brilhante,
observando-me de cima de uma das prateleiras, enquanto meditava. Os gatos
pensam muito, dizia-me o tio Gil, pensam mais que nós.
Conheci
um monge que veio do Egipto. Daqueles que o nosso rei costuma cá ter e de quem
ninguém fala. Adoram por lá, apesar de infiéis, a inteligência dos gatos. Aqui,
na Europa, há gente que os receia. Dizem que têm artes do Diabo e incorporam satã.
Disparates! Os gatos são sábios, asseados e discretos. Vê bem. Não têm, ao
contrário de nós, piolhos. O tio Gil tinha razão. Sempre gostei de gatos. Vi-os
cirandar pela casa, nas ruelas, gordos ou famintos, mas sempre inteligentes. Os
grandes sobreviventes. Como eu. Os meus livros e um gato que herdei de mestre
Tadeu e que, desde o início da viagem se adaptou com os companheiros de bordo
às más condições do mar e da comida, acompanharam-me e aqui, em Nápoles, ele
observa-me à espera que eu desembarque e o leve comigo. Temos tempo. Só amanhã
desço do barco. Foi o contrato que fiz com o capitão. Estou à espera de um amigo
e, com ele, prosseguirei o meu caminho.
Pensei
seguir a vida religiosa mas algo se interpôs: eu, na minha carne exigente, e
uma rapariga de um bordel, uma flamenga azoogada e de subtis artes deixada em
Lisboa por um mercador genovês. Preferi continuar os estudos para me dedicar à
medicina e foi por isso que conheci mestre João, Abravanel, mestre Rodrigo e os
outros, mas em breve partia para novos destinos. A Universidade mudou de poiso
várias vezes, entre Lisboa e Coimbra, e ministravam-se ainda cursos com que sonhei
nas universidades estrangeiras, Colónia, Oxford, Salamanca, Bolonha, que os
mais ricos frequentavam. Pensei ainda em Paris, Montpellier, Toulouse... Ser
bacharel em Salamanca agradar-me-ia, mas os negócios corriam mal, meu pai
adoeceu, minha bela flamenga foi-se, uma noite, depois de fazer amor comigo,
com um francês, e eu adoeci. Precisamente no ano em que o Príncipe João veio de
Arzila, cheio de glória para começar a sua vida de casado com a infanta dona
Leonor sua mulher, adoeci gravemente. Não foi de peste, mas comecei a urinar sangue.
Minha mãe, em agonia, rezou à Senhora da Escada, à Virgem dos Doentes. De rojo,
percorreu as lajes das igrejas a pedir por mim. Eu era jovem, mas ia morrer. Os
físicos nunca falam assim desta forma conclusiva, ou raramente, mas o homem
abanava a cabeça cada vez que observava a cor púrpura da minha urina e me
apalpava o pulso que batia ao ritmo do febrão que me devorava as entranhas. Foi
antes que mestre Tadeu entrou na minha vida. Vivia há muitos anos em Portugal,
desde novo. O pai fugira da França, da grande expulsão, porque era judeu.
Mestre Tadeu acabara por atravessar toda a Península e estava a viver em Lisboa
desde jovem. Dizem que os marranos, são os perseguidores que o afirmam, preferem
sempre para convívio outros marranos e até casam frequentemente entre si. É
verdade. Como meu tio Gil se fez amigo dele, não sei, mas eram amigos. Trocavam
livros, ideias, copiavam juntos livros de Arte. E a Arte uniu-os até à morte,
naquela fraternidade que liga os homens cuja alma sedenta do saber ultrapassa
as mesquinhas controvérsias da religião, da política, da inveja, do mal. Mestre
Tadeu já estava viúvo, tinha ou tivera uma casa na judiaria, mas dera-a a um
familiar vindo de Aragão e vivia, como alguns judeus ricos ou protegidos, fora
dela, numa pequena construção térrea, com um horto, sobre ruínas velhas, onde de
vez em quando apareciam peças cerâmicas, restos de pequenas pedras coloridas, vidros
irisados, instrumentos de bronze e ferro da vida quotidiana de séculos atrás e
muitos fragmentos de utensílios que os árabes por aí deixaram. O seu horto,
limitado por estacas e painéis de cestaria em vime, recordava as hortas e os jardins,
em ponto pequeno, dos conventos, o dos Franciscanos, o dos Agostinhos, o dos
Dominicanos que era quase uma universidade. De resto, nas traseiras das casas,
todos têm hortas. Só que a de mestre Tadeu continha o recanto do boticário.
Aqui, meu filho, é o horto. Vocês, cristãos, e Deus vos proteja, relacionam isto
com a Virgem. Ela transforma-se no Hortus Conclusus… Sempre as raízes
judaicas da vossa cultura... O Cântico de Salomão, que é a obra poética mais
bela da Antiguidade, da nossa, transformando a Virgem no paraíso fértil, apesar
de Virgem intacta! Ria, o olhar azul líquido, a tez branca. Onde foste tu
buscar, maldito judeu, esses olhos cor do céu?, perguntava-lhe o tio Gil. A
minha mãe, cão, que era uma francesa de Angoulême! E ria, alegre, como uma criança».
In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
Cortesia de
EPresença/JDACT