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Triste espectáculo para os nossos olhos magoados! Ali jazia ele, ensanguentado
o corpo nu, despojado do armamento. No peito traspassado, a funda chaga violácea
da lança. Cara, braços, pernas, toda aquela carne de um belo homem de vinte e poucos
anos golpeada e macilenta. No jardim florido, em frente da casa, já os criados
erguem a pira. Os sacerdotes fazem as libações ao deus. Minha mãe Cléis chora, agarram-se-lhe
às saias, de olhos aterrorizados, os meus três irmãozinhos. É então que eu, antes
de erguerem o corpo hirto e o depositarem na pira, me desligo da mão de minha mãe
e, aproximando-me, deixo desabrochar o meu pranto sobre o querido cadáver. Arrancam-me
dali e não tarda que as chamas reduzam a cinzas o herói…
Nessa
hora, ante a crueza real da morte, aquela ausência concreta da figura do pai, na
sua cadeira, à escrivaninha, onde descansam adormecidos e inertes os utensílios
de seu uso, vazio o seu lugar à mesa das refeições, a falta do calor dos seus braços
a pegarem-me ao colo, o silêncio da sua voz a ecoar-me nos ouvidos, alaga-me a solidão
como onda a espraiar-se no areal deserto, sou tempo, vento, animal selvagem, águia,
condor, gerifalto, e me nasço em mim esta alma inquieta e ansiosa de vida, me estremece
todo o ser, as carnes e o miolo dos ossos, se me desabotoam os sentidos, o olhar,
o ouvir, o cheirar, o paladar, sou desejo, paixão, delírio. Cores, sons, perfumes,
gostos, ritmos, todas as inefáveis maravilhas da terra, do céu e do mar acordam
em mim sonho de infância para sempre..., e o temor e veneração dos deuses imortais...
Para
protecção sua e dos filhos e por conselho de Eurígies, rico irmão que vive em Mitilene,
minha mãe parte connosco para aquela cidade resguardada a sueste da ilha. Trajecto
penoso de cerca de trinta e um estádios, em carroça tirada por muares, as almas
tristes aos solavancos da estrada de montanha, ela, a pobre viúva, silenciosa olhando
a paisagem sem a ver, a dormirem ao colo das aias os meninos. Só eu, os meus
sentidos despertos retêm tudo o que de fora vem, ao perto e ao longe, o acre cheiro
dos pinhais, no descer das colinas a cinza das oliveiras. Passa por nós a marcha
pesada de guerreiros a caminho dos campos de batalha. Contornamos agora caminho
pelas margens do golfo de Pirra, guinamos a sueste, vê-se ao longe, à direita,
o alto do Olimpo lésbio dourado de sol. Mais montanha e, lá em baixo, a cidade e
o mar, tão perto que apetece mergulhar naquele límpido azul. Soutos de castanhais
e carvalhais, aqui e ali espetados do esguio verde--negro dos ciparissos, a
serra vem quase beijar as ondas. A oeste, a acrópole, em pequena ilha separada da
terra montanhosa por estreito canal, o Euripo, atravessado por pontes de pedra branca,
e a ágora rodeada de casinhas. Para cá, à beira-mar e nas vertentes inferiores
das colinas, se estende a cidade.
Passadas
as pontes, em cada extremo do canal seu porto. O do norte, protegido por forte
molhe, serve a pescadores, a barcos de mercadores e aos que ligam a ilha às cidades
costeiras da Eólia, a cerca de dezassete estádios; o do sul, guardado por dois paredões
fortificados, abriga uma frota de cinquenta navios de guerra. Para baixo, pela orla
da praia, as vivendas abastadas, em meio de jardins viçosos. O tio Eurígies
acolhe-nos à porta, já a criadagem descarrega as carroças bagageiras. Entramos.
No pátio, o boi paciente, atrelado ao timão do engenho, caminha eternamente em volta
do gargalo do poço. Gira gemente a grande roda de madeira, de que apenas se vê metade,
e cantam os baldes de barro a escorrerem água cintilante para a calhe que a leva
ao tanque.
E o murmúrio
do mar trazido pela brisa e a melopeia do ranger do madeiro, misturados ao vozear
das gentes que passam lá fora, ficam para sempre nos meus ouvidos de menina e esforço-me
por que ressoem nos meus versos... Durante a guerra, onze anos, faço-me mulher.
As regras vêm-me aos doze. Fico aflita ante aquele escorrer de sangue. Mãezinha, vou morrer! Que dizes, filha? Mostro-lhe.
Queridinha! Ela sorri aquele sorriso triste que lhe ficou da morte de meu pai e
levemente revela-me o segredo das luas mensais. Menina, não se alarme!, também
Cleonice me explica o fenómeno. Isso quer dizer que, daqui em diante, pode ser mulher.
Daqui em diante? Para uma rapariga se considerar mulher, será necessário..., e segreda-me
ao ouvido o milagre da vida. Faço agora dezasseis anos. Aprendo as tarefas próprias
de quem terá a seu cargo dirigir casa, tecer, cozinhar, ler, escrever e contar,
tocar o bárbito e a cítara, cantar e dançar nas cerimónias religiosas. Rapazes,
atarefados no serviço militar, quase não temos convívio com eles. E eu e as minhas
aias, Cleonice, Íole e Cléofis, juntamo-nos, cantamos e dançamos, como dantes. Vamos
correr ao luar!, desafio-as. A noite está quente. Passearemos sob as árvores, ao
gorjeio de rouxinóis e pintassilgos, ao zingarreio metálico das cigarras, à luz
da lampadazinha intermitente dos pirilampos...» In Fernando Campos, A Rocha
Branca, Editora Objectiva, Alfaguara, 2011, ISBN 978-989-672-111-4.
Cortesia de
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