quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

A Rocha Branca. Fernando Campos. «Passadas as pontes, em cada extremo do canal seu porto. O do norte, protegido por forte molhe, serve a pescadores, a barcos de mercadores e aos que ligam a ilha às cidades costeiras da Eólia»

jdact

«(…) Triste espectáculo para os nossos olhos magoados! Ali jazia ele, ensanguentado o corpo nu, despojado do armamento. No peito traspassado, a funda chaga violácea da lança. Cara, braços, pernas, toda aquela carne de um belo homem de vinte e poucos anos golpeada e macilenta. No jardim florido, em frente da casa, já os criados erguem a pira. Os sacerdotes fazem as libações ao deus. Minha mãe Cléis chora, agarram-se-lhe às saias, de olhos aterrorizados, os meus três irmãozinhos. É então que eu, antes de erguerem o corpo hirto e o depositarem na pira, me desligo da mão de minha mãe e, aproximando-me, deixo desabrochar o meu pranto sobre o querido cadáver. Arrancam-me dali e não tarda que as chamas reduzam a cinzas o herói…
Nessa hora, ante a crueza real da morte, aquela ausência concreta da figura do pai, na sua cadeira, à escrivaninha, onde descansam adormecidos e inertes os utensílios de seu uso, vazio o seu lugar à mesa das refeições, a falta do calor dos seus braços a pegarem-me ao colo, o silêncio da sua voz a ecoar-me nos ouvidos, alaga-me a solidão como onda a espraiar-se no areal deserto, sou tempo, vento, animal selvagem, águia, condor, gerifalto, e me nasço em mim esta alma inquieta e ansiosa de vida, me estremece todo o ser, as carnes e o miolo dos ossos, se me desabotoam os sentidos, o olhar, o ouvir, o cheirar, o paladar, sou desejo, paixão, delírio. Cores, sons, perfumes, gostos, ritmos, todas as inefáveis maravilhas da terra, do céu e do mar acordam em mim sonho de infância para sempre..., e o temor e veneração dos deuses imortais...
Para protecção sua e dos filhos e por conselho de Eurígies, rico irmão que vive em Mitilene, minha mãe parte connosco para aquela cidade resguardada a sueste da ilha. Trajecto penoso de cerca de trinta e um estádios, em carroça tirada por muares, as almas tristes aos solavancos da estrada de montanha, ela, a pobre viúva, silenciosa olhando a paisagem sem a ver, a dormirem ao colo das aias os meninos. Só eu, os meus sentidos despertos retêm tudo o que de fora vem, ao perto e ao longe, o acre cheiro dos pinhais, no descer das colinas a cinza das oliveiras. Passa por nós a marcha pesada de guerreiros a caminho dos campos de batalha. Contornamos agora caminho pelas margens do golfo de Pirra, guinamos a sueste, vê-se ao longe, à direita, o alto do Olimpo lésbio dourado de sol. Mais montanha e, lá em baixo, a cidade e o mar, tão perto que apetece mergulhar naquele límpido azul. Soutos de castanhais e carvalhais, aqui e ali espetados do esguio verde--negro dos ciparissos, a serra vem quase beijar as ondas. A oeste, a acrópole, em pequena ilha separada da terra montanhosa por estreito canal, o Euripo, atravessado por pontes de pedra branca, e a ágora rodeada de casinhas. Para cá, à beira-mar e nas vertentes inferiores das colinas, se estende a cidade.
Passadas as pontes, em cada extremo do canal seu porto. O do norte, protegido por forte molhe, serve a pescadores, a barcos de mercadores e aos que ligam a ilha às cidades costeiras da Eólia, a cerca de dezassete estádios; o do sul, guardado por dois paredões fortificados, abriga uma frota de cinquenta navios de guerra. Para baixo, pela orla da praia, as vivendas abastadas, em meio de jardins viçosos. O tio Eurígies acolhe-nos à porta, já a criadagem descarrega as carroças bagageiras. Entramos. No pátio, o boi paciente, atrelado ao timão do engenho, caminha eternamente em volta do gargalo do poço. Gira gemente a grande roda de madeira, de que apenas se vê metade, e cantam os baldes de barro a escorrerem água cintilante para a calhe que a leva ao tanque.
E o murmúrio do mar trazido pela brisa e a melopeia do ranger do madeiro, misturados ao vozear das gentes que passam lá fora, ficam para sempre nos meus ouvidos de menina e esforço-me por que ressoem nos meus versos... Durante a guerra, onze anos, faço-me mulher. As regras vêm-me aos doze. Fico aflita ante aquele escorrer de sangue.  Mãezinha, vou morrer! Que dizes, filha? Mostro-lhe. Queridinha! Ela sorri aquele sorriso triste que lhe ficou da morte de meu pai e levemente revela-me o segredo das luas mensais. Menina, não se alarme!, também Cleonice me explica o fenómeno. Isso quer dizer que, daqui em diante, pode ser mulher. Daqui em diante? Para uma rapariga se considerar mulher, será necessário..., e segreda-me ao ouvido o milagre da vida. Faço agora dezasseis anos. Aprendo as tarefas próprias de quem terá a seu cargo dirigir casa, tecer, cozinhar, ler, escrever e contar, tocar o bárbito e a cítara, cantar e dançar nas cerimónias religiosas. Rapazes, atarefados no serviço militar, quase não temos convívio com eles. E eu e as minhas aias, Cleonice, Íole e Cléofis, juntamo-nos, cantamos e dançamos, como dantes. Vamos correr ao luar!, desafio-as. A noite está quente. Passearemos sob as árvores, ao gorjeio de rouxinóis e pintassilgos, ao zingarreio metálico das cigarras, à luz da lampadazinha intermitente dos pirilampos...» In Fernando Campos, A Rocha Branca, Editora Objectiva, Alfaguara, 2011, ISBN 978-989-672-111-4.

Cortesia de EObjectiva/Alfaguara/JDACT