Cortesia
de wikipedia e jdact
«Assim, depois de tantos anos, voltava de novo a casa.
De pé, na praça principal (que, criança, depois rapaz, depois jovem,
atravessara mil vezes), não sentia qualquer emoção; pelo contrário, pensava que
aquele espaço onde a torre do sino (parecida com um antigo cavaleiro sob o seu
elmo) se vê acima dos telhados, lembrava a vasta parada de um quartel, e que o
passado militar daquela cidade da Morávia, outrora muralha contra as incursões
dos Magiares e dos Turcos, imprimira nela a marca de uma irrevogável fealdade. Durante
anos, nada me atraíra à minha cidade natal. Dizia-me que ela se me tinha
tornado indiferente, e isso parecia-me natural: ao fim de quinze anos vividos
fora, só me restam alguns conhecidos, ou mesmo os amigos (que prefiro, de
resto, evitar); a minha mãe está enterrada num túmulo estrangeiro, que não
visito. No entanto iludia-me: aquilo que eu chamava indiferença era na
realidade rancor; escapavam-me as razões, pois tinham-me acontecido coisas boas
ou coisas más nesta cidade como em todas as outras, em todo o caso esse rancor
existia; percebera-o durante a minha viagem: a missão que aqui me trazia
poderia, bem vistas as coisas, cumpri-la igualmente bem em Praga, mas tinha
sido, num repente, irresistivelmente atraído pela ocasião oferecida de
executá-la na minha cidade natal, precisamente por se tratar de uma missão
cínica e terra-a-terra que, por ironia, me absolvia da suspeita de aqui voltar
sob o efeito de um enternecimento piegas pelo tempo perdido.
Uma vez mais, percorri cinicamente com os olhos a
praça desengraçada antes de lhe voltar costas e tomar a rua do hotel onde tinha
um quarto alugado para essa noite. O porteiro estendeu-me uma chave pendurada
numa pêra de madeira dizendo segundo andar. O quarto não era muito convidativo:
uma cama contra a parede, no meio uma mesinha com uma única cadeira, ao lado da
cama um pretensioso toucador de mogno com espelho, junto da porta um lavatório
lascado absolutamente minúsculo. Pousei a toalha na mesa e abri a janela: a
vista dava sobre um pátio e sobre casas com as traseiras nuas e sujas viradas
para o hotel. Fechei a janela, corri os cortinados e aproximei-me do lavatório,
que tinha duas torneiras, uma com sinal encarnado, outra azul; experimentei-as,
a água correu igualmente fria em ambas. Examinei a mesa, que, em rigor,
chegava, visto que nela cabiam perfeitamente uma garrafa e dois copos;
infelizmente, à falta de uma segunda cadeira no quarto, só uma pessoa se poderia
lá instalar. Tendo puxado a mesa para perto da cama, tentei sentar-me nesta,
mas era demasiado baixa e a mesa alta de mais; mais ainda, encovava de tal
maneira que logo foi evidente que não só constituía um mau assento, como
desempenharia de maneira duvidosa a sua função de cama. Apoiei-me nos punhos;
depois estendi-me levantando cuidadosamente os pés calçados para evitar sujar a
coberta e o lençol. Com o colchão cavado sob o meu peso, encontrava-me
estendido como numa rede ou numa campa estreita: não me era possível imaginar
partilhar aquela cama com alguém.
Sentei-me na cadeira, o olhar perdido nas cortinas
iluminadas em transparencia, e reflecti. Nesse momento, fizeram-se ouvir passos
e vozes no corredor; duas pessoas, um homem e uma mulher, e cada palavra era
inteligível: falavam de um certo Petr, que tinha fugido de casa, e de uma tal
Mara, que era idiota e estragava o pequeno; depois ouviu-se uma chave a rodar
na fechadura, uma porta que se abria e as vozes que continuavam no quarto ao
lado; ouvi os suspiros da mulher (sim, até os suspiros me chegavam!) e a
decisão do homem de dizer de vez duas palavras à Mara. Levantei-me, a minha
resolução estava tomada; lavei ainda as mãos no lavatório, limpei-as com a
toalha, e deixei o hotel sem saber ao certo para onde ia. Sabia simplesmente
que, se não quisesse comprometer o bom sucesso de toda a minha viagem (viagem
consideralvelmente longa e fatigante) por causa da única imperfeição do meu
quarto de hotel, devia, por muito que não me apetecesse, fazer um discreto
apelo a qualquer amigo local. Passei rapidamente em revista todas as caras do
tempo da minha juventude, para logo as afastar, pois o carácter confidencial do
favor solicitado me iria obrigar a construir uma ponte laboriosa sobre os
muitos anos em que nos perdêramos de vista, e isto desagradava-me. Depois
lembrei-me de que aqui vivia sem dúvida um homem a quem outrora tinha, aqui
mesmo, arranjado um emprego e que ficaria, pelo que conheço dele, muito
contente por me fazer por sua vez um favor.
Era um ser estranho, simultaneamente de uma moralidade
rígida e curiosamente inquieto e instável, de quem, pelo que eu sabia, a mulher
se tinha divorciado ao fim de vários anos pelo simples facto de ele viver
indiscriminadamente em qualquer lado, desde que fosse longe da mulher e dos
filhos. Assustava-me a ideia de que ele se pudesse ter voltado a casar,
circunstância propícia a complicar a satisfação do meu pedido, e apressei o
passo em direcção ao hospital. O hospital é um conjunto de edifícios e pavilhões
semeados aqui e ali sobre um vasto espaço de jardins; entrei na pequena guarita
junto ao portão e pedi ao porteiro sentado atrás de uma mesa para me pôr em
contacto com a secção de virologia; ele empurrou o telefone para o canto da
mesa do meu lado e disse: zero dois! Marquei o zero dois e fiquei a saber que o
doutor Kostka saíra há alguns segundos e que estaria prestes a chegar à saída.
Sentei-me num banco perto da porta principal para me assegurar de que o não
perderia, e olhava distraidamente os homens passeando-se em roupão de hospital,
de riscas azuis e brancas, quando o vi: vinha pensativo, alto, magro, simpático
na sua falta de presença, sim, era mesmo ele. Levantei-me do meu banco e fui
direito a ele como se fosse empurrá-lo; deitou-me um olhar de desagrado, mas
depressa me reconheceu e me abriu os braços. Senti que a sua surpresa foi de
quase felicidade, e a espontaneidade do seu acolhimento deu-me prazer». In Milan Kundera, A
Brincadeira, 1967, Publicações dom Quixote, Lisboa, 1994, ISBN 978-972-200-014-4(7),
2016, ISBN 978-972-205-917-6.
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